24 de fevereiro, de 2021 | 14:12

Estão querendo te fazer de BBBesta?

João Paulo Xavier *

“Nossos projetos pessoais, interesses humanos, desejos e vaidades não podem ser confundidos com militância”

“Não podemos confundir falhas de caráter e estratégias midiáticas utilizadas em um jogo que vale R$ 1,5 milhão e para o qual as pessoas têm se mostrado capazes de fazer qualquer coisa, com militância”

Você conhece os seguintes personagens históricos e sabe o que eles têm em comum: José do Patrocínio, Mandela, Ghandi, Margarida Maria Alves, Marielle Franco e Benedita da Silva? Não. Não se preocupe caso não saiba. Até o fim deste artigo você terá entendido além de aspectos históricos, um pouquinho de sociologia e uma pitada de educação crítica. Prometo. Rapidamente, José do Patrocínio era filho de uma garota de 13 anos que foi escravizada e estuprada por um sacerdote cristão, branco, de 54 anos. Negro de pele clara, Patrocínio nasceu em 1853 durante o período escravagista brasileiro. Trabalhou por um tempo como servente de pedreiro e guardou dinheiro para estudar. Formou-se em farmácia e, posteriormente, tornou-se escritor, jornalista e orador. Por sentir na pele como as desigualdades sociais e raciais afligiam as pessoas negras escravizadas naquela época, Patrocínio passou a questionar o sistema escravocrata por meio de seus textos que, amplamente, divulgados pelos jornais da época, contribuíram para preparar as mentes do povo para o processo de abolição da escravidão decretado em 1888. Nelson Mandela, 1918-2013, foi um dos mais importantes presidentes da África do Sul. Liderou o movimento contra o Apartheid que era um sistema de segregação dos negros naquele país. Por isso, foi condenado à prisão perpetua, em 1964, mas foi libertado em 1990, passados 27 anos. Em 1994, após longas negociações, Mandela conseguiu a realização da primeira eleição multirracial, em abril de 1994, por meio dela foi eleito o primeiro presidente democrático da África do Sul.

Mahatma Gandhi foi um advogado, nacionalista, anticolonialista e especialista em ética política. Nascido na Índia, articulou um movimento nacional de resistência não violenta para liderar uma campanha, bem-sucedida, para a independência de seu país do domínio do Reino Unido. Margarida Maria Alves foi uma sindicalista e defensora dos direitos humanos no Brasil. Foi uma das primeiras mulheres a exercer um cargo de direção sindical no país. Paraibana, defendeu os direitos das mulheres do campo. Seu nome e sua história de luta inspiraram a Marcha das Margaridas, que foi criada em 2000. Marielle Franco foi uma socióloga, política e presidiu a Comissão da Mulher na Câmara do Rio de Janeiro. Era defensora dos direitos humanos. Pesquisava os impactos da presença das UPPs nas comunidades periféricas e a truculência da polícia em suas ações nas periferias. Benedita Sousa da Silva Sampaio é uma servidora pública, professora, auxiliar de enfermagem, assistente social e política brasileira. Foi a primeira negra a se eleger senadora no Brasil. Foi eleita a 59ª governadora do Rio de Janeiro e, atualmente, é deputada federal. Sabe o que todas essas pessoas têm em comum? Um pensamento e interesses coletivos. Uma agenda e um propósito para falar, agir e se mover na sociedade. Foram capazes de influenciar as opiniões nas esferas sociais e políticas. Tensionaram as relações econômicas de poder e dominação que se estabelecem na sociedade. Isso é o real significado da palavra militância.

Nossos projetos pessoais, interesses humanos, desejos e vaidades não podem ser confundidos com militância, mesmo que nos valhamos de conceitos, falas, costumes e até estejamos contemplados em pautas sociais ou projetos que militem em prol de algo maior. Precisamos ver as linhas que delineiam e separam os nossos interesses privados dos interesses coletivos. O militante não é apenas uma pessoa empática com relação às aflições ou ideais de um determinado grupo. Por exemplo, uma pessoa não se torna um militante dos diversos movimentos negros apenas por ser negra. Ela precisa entender qual é essa bandeira que está sendo levantada e contra quais ventos ela tremula no céu. Usar termos técnicos ou jargões da advocacia ou conviver cercado de advogados não te fazem um advogado se você não tem a formação acadêmica adequada nessa área.

O mesmo raciocínio é aplicável à militância. Ser LGBT ou estar cercado de pessoas LGBTS, caso prefira você pode substituir LGBT por quaisquer outros movimentos sociais, por exemplo: a causa ambientalista, negros, indígenas; o resultado será sempre o mesmo. Para ser militante, há de se ter entendimento acerca das relações que permeiam ou atravessam as causas sobre as quais se milita. É estar disposto a questionar, explicar, repetir, refletir, repetir uma vez mais e quantas vezes se fizerem necessárias acerca dos porquês dessas causas, de onde elas surgem e os motivos de serem parte do nosso projeto de vida. Porque sim, militar é adotar uma causa como parte da sua vida.

As perguntas que venho recebendo devido aos participantes negros do BBB sinalizam que o número de pessoas que precisam ler este artigo é imenso porque há quem acredite que os participantes do reality show estão “militando ao contrário” ou queimando o filme do movimento negro. Nem uma coisa nem outra! Ser negra, por exemplo Karol Conká ou Nego Di, não os condecoram, automaticamente, militantes. Eles podem até ter vivenciado situações contra as quais os movimentos negros se posicionam e combatem, mas não podemos confundir falhas de caráter e estratégias midiáticas utilizadas em um jogo que vale 1,5 milhão de reais e para o qual as pessoas têm se mostrado capazes de fazer qualquer coisa, com militância. Nesse exemplo, podemos ver que eles estão apenas expondo o estado de ignorância em que vivem e isso não é militar a favor de nada, querides. São celebridades, formadores de opinião, influenciadores digitais etc., estão ali por si. Se ganharem o prêmio ganham para si, para suas causas e interesses pessoais. Como já expliquei, isso é o primeiro quesito eliminatório no paredão da militância. Você não se move isoladamente ou por interesse próprio. Levantar bandeiras, usar frases de efeito, parecer-se fenotipicamente com um grupo e até se autoproclamar militante não são suficientes para te tornar parte de um movimento social. Sugiro que, além de compartilhar este artigo com seus amigos, você que deseja defender uma causa, busque informações que possam te ajudar a elucidar os seus reais motivos para isso.

Dúvidas surgirão e, quando isso ocorrer, procure pessoas, instituições ou ONGs que possam te oferecer respostas e que te acolham em seus coletivos. “Ninguém solta a mão de ninguém” precisa ser uma reflexão contínua enquanto você descobre quais são, de fato, os interesses que você quer defender e por quê. Não confunda alhos com bugalhos e piração no BBB com causas pelas quais as pessoas dedicam seus esforços, inteligência, pensamentos e entregam suas vidas, se necessário for, para que ocorram.

* Doutor em Estudos Linguísticos – Pesquisador e Professor efetivo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) instagram: @nazareorientadora
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