29 de novembro, de 2022 | 13:00

O Espírito da Copa chegou

Beto Oliveira *

O futebol é um esporte em que os jogadores, à exceção dos goleiros, precisam abdicar do uso das mãos. Isso por si só já é um desafio instigante, já que em nosso processo evolutivo, ao adotarmos a postura ereta, as patas dianteiras foram justamente as que ficaram livres para manipular e aprender habilidades mais complexas. Não que as patas traseiras continuassem servindo única e exclusivamente para locomoção e equilíbrio, mas, em termos de habilidades, foram, em geral, muito menos exploradas. E é com elas que o futebol é jogado.

Isso já fez com que críticos estadunidenses acusassem o futebol de ser um esporte menos nobre, menos evoluído, quase como se fosse coisa de bárbaros. Evidentemente, tal conclusão, vinda de um país onde o futebol era muito pouco popular, revelou de imediato sua base preconceituosa e supremacista. A verdade é que isso deixou o esporte muito mais desafiador, mágico, um evento bárbaro, por assim dizer, mas no sentido de incrível.

Essa condição de usar os pés para chutar, já usada por povos como os maias e os astecas, que usavam bolas de borrachas (há relatos de que os chineses usavam cabeças de inimigos), bem combinada com as 13 regras inventadas pelos ingleses no fim do Século XIX, ajudou o futebol a se tornar o esporte mais popular do mundo, com cerca de 4 bilhões de admiradores. Um esporte com tal apelo popular, que necessita praticamente apenas de uma bola (o gol e o campo a gente improvisa), em um país que conquistou 5 títulos mundiais e é famoso por ser o “país do futebol” – como bem constatou Milton Nascimento e Fernando Brant na canção de 1970 – não teria dificuldades em contagiar milhões de brasileiros durante seu certame mundial.

“No dia do jogo era nítido o uso amplo da
amarelinha, sem aquele ar sectário de quem
está alinhado com um delirante golpe militar”


No entanto, nesse ano, como foi apontado por muitos internautas, o Espírito da Copa parecia demorar a chegar. Em coluna para esse mesmo jornal, destaquei três empecilhos para tal contágio, além do excesso de informações que nos bombardeia com cada vez mais intensidade.

Ao que parece, com o início efetivo da Copa, começamos, ainda que parcialmente, a driblar tais obstáculos. As críticas à Fifa e ao Catar, algumas de tom severo, outras debochadas (como chamar a mascote da Copa de Tapioca Homofóbica), começaram a tornar mais possível curtir o torneio criticamente. Também em campo, jogadores ingleses e alemães fizeram protestos nessa direção – embora, levando em conta a história mundial, seja sempre polêmico europeu ocidental querer ditar a outros povos o que é correto ou não. Mas em se tratando de desrespeito a direitos humanos, os protestos parecem válidos.

Quanto a camisa da seleção, usada politicamente nos últimos tempos, também parece que começou a se desembaraçar desse ranço. No dia do jogo era nítido o uso amplo da amarelinha, sem aquele ar sectário de quem está alinhado com um delirante golpe militar. E também foi bom ver colorir nossa torcida com camisas azuis, nosso segundo uniforme, algumas verdes-escuros do treino de 70, ou a branca que usamos como camisa oficial até perder a Copa de 50 em pleno Maracanã (culparam a camisa, e desde lá não a usamos mais).

Quanto a Neymar, com atitudes controversas dentro e fora de campo, o primeiro jogo deixou claro uma coisa: mesmo sendo craque e tendo boa participação no time, a seleção depende cada vez menos dele. Que ele se recupere, mas se levarmos o caneco, a Copa será do Brasil, e não a “Copa do Neymar”, como profetizaram alguns. No mais, a pintura de Richarlison, craque dentro e fora de campo, tratou de enraizar de vez o Espírito da Copa entre nós, mandando homofobia, falso patriotismo e estrelismo para o escanteio.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor dos livros “O dia em que conheci Sophia”, “As Cornucópias da Fortuna” e “O Chiste”.

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