25 de dezembro, de 2025 | 07:00
Crônica de Natal
William Passos*
De todas as palavras que podem ser ditas, as que mais falam são as ditas com o silêncio. Silêncio transmigrado em forma de gesto, carinho, lembrança, memória. Memória é a eternização da vida, é o triunfo sobre a desdita, desventura, comiseração. Comiseração, este substantivo feminino, decerto lembra o verbo divino encarnado numa manjedoura do Oriente, antes de orientar o sol invencível do solstício do Ocidente.
Natal é a esperança do desalento, a redenção do abatimento, a ressurreição do desamparo. Natal, quando bem experimentado, é foto de família, este armistício iluminado que renova nossa fé na humanidade, como se fosse uma flor de lótus desabrochando no Deserto do Neguev. Um arco de violino executando com virtuose um si bemol suave numa oitava aguda. O cheiro do orvalho que escorre sobre uma folha verde numa fria manhã nublada de outono. O aconchego do bolo de cenoura com cobertura de chocolate das tardes de sábado de uma avó que partiu antes que pudéssemos nascer.
Natal é daquelas datas que nos lembram que nascer é uma dádiva, ainda que a vida se revele como uma grande travessia de perdas, lutos e recomeços e uma busca incessante por significados e ressignificações significativas. Nem todo rebento chora no pós-parto. Nem todo nascido vivo vê a neve no inverno. Nem todo enfermo contempla o pôr do sol antes de partir. Observar os mais belos fiordes das altas latitudes é um privilégio, assim como ouvir a arrebentação do mar nas mais exuberantes falésias do hemisfério sul.
Natal é daquelas datas que nos lembram que nascer é uma dádiva, ainda que a vida se revele como uma grande travessia de perdas”
Olhar nos olhos da mãe durante a amamentação. Reconhecer a voz do pai cantando cantigas de ninar. Dormir uma noite inteira feito gente grande. Engatinhar. Ficar em pé, logo cair e chorar. Ficar em pé e andar até correr. Correr até ralar o joelho. Correr na chuva descalço. Cabelo e roupa toda encharcada em casa. Primeiros amiguinhos na escola. Primeiro aniversário só com os melhores amiguinhos. Primeiras sílabas. Primeiras frases. Mãe não sabendo responder o porquê das coisas. Mãe preocupada com o horário do filho chegar em casa. Infância ficou para trás. Bebezinho cresceu.
Mãe sabendo que será avó. Que terá que vestir a filha de noiva. Que precisa estar presente na colação de grau. Que filha foi aprovada na tão sonhada entrevista de emprego. Não necessariamente nesta mesma ordem. Cada uma tem seu ritmo, seu tempo, sua sorte. Há aquelas que jamais terão a sorte de ver o rosto da própria mãe, como há aquelas que fazem questão de se despedir do rosto da mãe uma última vez.
Todas as provações do mundo. Nenhuma tragédia precoce. Adolescência abortada. Infância até o fim da vida. Conforto financeiro: melhores presentes, festas de aniversários e escolas. Dinheiro contado: economia até na hora de comer. Tantos amores que fica difícil escolher. Tão poucos amores que jamais se saberá se ela um dia já foi amada. Pai presente. Apoio em todos os momentos. Quem sabe um dia se seus filhos terão o pai que a vida nunca lhe deu?
Rapaz estudioso, ou pelo menos esforçado. Menino que nunca deu a mínima para a escola. Casa que nunca seus pais tiveram, de tão boa. Presentes para os filhos que seus pais jamais teriam condições de dar. Quarto de favor, e ainda assim quando tem. Todo o cigarro e bebida possível. Para beber para esquecer. Para beber até ficar caído no chão e precisar de gente para levar para baixo de um chuveiro, afinal a vida é como a mega-sena - riqueza que não acaba mais, mas não é para todo mundo!
Com esperança e caridade, há quem jamais abandone a própria fé”
Alguém, afinal, criou tudo! Não é possível que tudo tenha nascido do nada! Há um sentido, uma finalidade, uma teleologia escatológica, com o perdão das palavras difíceis - como se o autor desta crônica precisasse pedir perdão com tantos vernáculos escolhidos a dedo! E é por isso que, com esperança e caridade, há quem jamais abandone a própria fé!
A fé, este substantivo monossílabo que ambiciona canalizar toda a profundidade da experiência humana do sagrado, é uma necessidade universal. É a água da qual se alimentam todos os nascidos de mulher que são chamados a compreender o sentido, a razão e o significado de estarmos aqui, desde que nascemos. A todos um Feliz Natal. O melhor Natal possível. Com muita saúde e união!
* Colaborador estatístico, jornalístico e literário do Diário do Aço desde 2019.
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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