05 de dezembro, de 2025 | 08:00
O Colonialismo que ainda bebe conosco: Da cegueira de Saramago ao Castelo de Kafka
Abner Benevenuto Araújo Paixão *
Existe um traço profundamente brasileiro - e, ao meu ver, profundamente colonial - que ainda define a forma como tratamos a hospitalidade: a tendência de valorizar o produto e desvalorizar o profissional. Herdamos a lógica que o objeto é nobre e a mão que o produz é menor. Isso atravessou séculos, mudou de roupa, mudou de cenário, mas continua determinando como olhamos para bares, eventos, coquetéis e para aqueles que os tornam possíveis. No Brasil, sempre parece mais confortável aplaudir o resultado do que reconhecer a pessoa.
É por isso que, em bares fixos ou grandes eventos, vejo a mesma dinâmica se repetir: o cliente admira o coquetel, a decoração, a atmosfera, mas raramente se pergunta quem gerou aquilo. É como se tudo surgisse por espontânea vontade das coisas. O gelo se produz sozinho, as frutas se cortam sozinhas, a logística se resolve magicamente. E quando algo falha - temperatura, tempo, fluxo, sabor, fila - a culpa recai quase sempre sobre quem está no front. Nunca sobre a estrutura. Nunca sobre o sistema. Nunca sobre a expectativa distorcida que o próprio cliente alimenta quando acredita que técnica é detalhe, e não fundamento.
Saramago escreveu em Ensaio sobre a Cegueira que somos cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”. Acho que essa frase descreve com precisão a maneira como o público consome a coquetelaria. As pessoas veem o copo, mas não enxergam o processo. Veem o resultado, mas não percebem o trabalho. Veem o glamour, mas não reconhecem o desgaste. Há uma cegueira social que não é falta de visão, mas falta de consciência.
Herdamos a lógica que o objeto é nobre e a mão que o produz é menor”
Kafka, em O Castelo, mostra um personagem que tenta o tempo todo participar de um sistema que depende dele, mas não o acolhe. Esse romance é quase um espelho da vida de muitos profissionais da hospitalidade. Bartenders, garçons, runners, sommeliers, cozinheiros, auxiliares - todos fazem o sistema funcionar, mas raramente são admitidos como parte reconhecida dele. Há sempre uma barreira invisível que separa quem serve e quem consome. Como se o trabalhador fosse útil, mas não digno de ser visto.
Quando observo clientes trazendo insumos inadequados para eventos, acreditando que o profissional se vira”, fica evidente que ainda operamos sob a mesma lógica antiga: exigir excelência com recursos mínimos. E o pior: culpar o profissional pelo resultado que ele não teve condições de controlar. É o ápice da cultura colonial aplicada à vida contemporânea o produto importa mais do que a pessoa. O coquetel importa mais do que a técnica. A satisfação imediata importa mais do que a ética.
Nos bares fixos, o cenário não muda muito. O cliente celebra a estética do coquetel, mas desconhece completamente a mise en place que começou horas antes. Não sabe das limpezas, dos cortes, das preparações, das reduções, das infusões, do gelo tratado como ingrediente, das escolhas que envolvem paladar e segurança. Em eventos, isso assume uma escala ainda maior: o trabalho de montar, transportar, ajustar, calibrar e reconstruir o bar dezenas de vezes numa mesma noite simplesmente desaparece da percepção pública.
Mas essa invisibilidade tem um custo. Quando o setor não reconhece seu próprio valor, o mercado inteiro se molda de forma frágil. E é isso que está acontecendo: consumo alto, exigência alta, reconhecimento baixo. Nenhum ecossistema humano se sustenta assim. Nenhuma profissão floresce quando o cliente acredita que o produto é tudo e o profissional é nada. Nenhum bar cresce quando trata a equipe como peça, e não como fundamento.
Kafka nos alertou que sistemas opacos se alimentam da falta de reconhecimento”
A coquetelaria brasileira - e todo o trabalho por trás da hospitalidade - precisa de uma reeducação cultural.
Precisamos parar de fingir que o coquetel é autônomo. Ele não é. Ele é resultado de uma pessoa. De uma decisão. De um repertório. De um corpo que trabalhou. De uma mão que sabe o que faz. De alguém que domina técnica, mas também ritmo, improviso, sensibilidade e, acima de tudo, responsabilidade emocional.
Saramago nos ensinou que a dignidade não tem preço”. Kafka nos alertou que sistemas opacos se alimentam da falta de reconhecimento. Eu, vendo a realidade dos bares e dos eventos, acredito que o problema não é a bebida, a coquetelaria, o fluxo ou o público. O problema é uma cultura que insiste em esconder quem constrói o que consome. O problema é a crença antiga ainda viva - de que a pessoa deve servir silenciosamente enquanto o produto se destaca.
Se há um ponto definitivo, é este: o valor da hospitalidade não está no coquetel. Está em quem o prepara. E enquanto não entendermos isso, continuaremos cegos vendo, mas não enxergando.
* Bartender da região do Vale do Aço, com experiência em bares e eventos.
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