07 de novembro, de 2025 | 08:00
Gelo: O elemento silencioso do coquetel
Abner Benevenuto Araújo Paixão *
Poucos percebem, mas o gelo é o coração que pulsa dentro de um bar. Ele está ali, transparente e silencioso, sustentando a estrutura de um drink muito antes de o cliente ou convidado ou o degustador antes mesmo de dar o primeiro gole. Em todo esse tempo de bar e eventos e trabalhos com a coquetelaria, a percepção sempre foi nítida que o gelo é, ao mesmo tempo, o elemento mais simples e o mais complexo da coquetelaria - e talvez o mais subestimado.
É curioso como cada cliente ou convidado costuma se encantar com a cor, o aroma e o copo, mas raramente percebe que tudo isso depende da qualidade do gelo. O gelo é o maestro que equilibra toda aquela sinfonia, é o ditador que dita o tempo do drink. Ele decide se a bebida será equilibrada, se o aroma se manterá, se o paladar será limpo ou pesado. Um gelo errado, mesmo em um coquetel perfeito, destrói a experiência e qualidade em poucos minutos. Já um gelo bem-feito evolui o mesmo coquetel para outro patamar.
No bar, a escolha do gelo é quase uma ciência. Cada formato cumpre um papel técnico: o gelo grande ou slow melt” é ideal para coquetéis de estrutura alcoólica intensa, como por exemplo Negroni, porque dilui (derrete ) bem devagar, mantendo o equilíbrio da bebida. O gelo triturado, por sua vez, é um aliado em drinks tropicais, refrescantes, que pedem diluição rápida e integração entre os ingredientes - pense numa caipivodka e caipirinha bem servida. Já o gelo em esfera é pura estética funcional: mantém o frio, preserva o sabor e encanta o olhar.
Mas a forma é apenas parte da história. O que define um gelo de qualidade é a pureza da água e o controle de congelamento. Um gelo turvo, com bolhas e impurezas, não apenas afeta o sabor, mas também transmite descuido. O gelo cristalino, aquele transparente como vidro, nasce de um processo paciente água filtrada, congelamento lento e direcionado, temperatura constante. Ele não tem cheiro, não tem sabor, e é justamente por isso que é perfeito: não interfere, apenas revela.
Quem trabalha com coqueteria ou bar ou afins sabe o quanto o gelo é ingrato nesse sentido. Ele exige cuidado e respeito, mas raramente recebe crédito. Eu já vi colegas perderem a paciência tentando explicar ao cliente por que o copo está cheio de gelo. A reação é quase sempre a mesma: pode colocar menos?”. E é nessa hora que entra o lado mais desafiador - educar o cliente. Mesmo quando é irritante, mesmo quando o bar está cheio, é preciso respirar fundo e explicar que o gelo não é enchimento”, mas estrutura. Ele não rouba espaço da bebida, ele mantém o equilíbrio dela.
O gelo é o maestro que equilibra toda aquela sinfonia, é o ditador que dita o tempo do drink”
É frustrante às vezes, sim. Os profissionais se esforçam para preparar um coquetel perfeito - e o cliente ou convidado pede para tirar metade. Mas é aí que percebo que o papel do barman vai além do balcão. A coquetelaria é também educação sensorial. Mostrar ao cliente que o gelo certo muda o sabor, o aroma e a temperatura é transformar um copo de vidro em uma pequena aula sobre paciência, precisão e arte.
A forma como o gelo é armazenado também faz parte desse ritual. O gelo precisa ser guardado em ambiente limpo, separado de outros alimentos, protegido de odores. Ele é tecnicamente um alimento, embora muita gente se esqueça disso. Cada detalhe interfere - da temperatura da geladeira à qualidade da água usada. Um descuido e o gelo absorve cheiros, oxida, perde brilho. E, quando isso ocorre, o drink sofre.
Há literaturas também sobre dizer que o gelo é o ingrediente invisível” do coquetel. Concordo, mas acrescento algo: ele é também o reflexo do trabalho do profissional. Onde há gelo malfeito, há pressa. Onde o gelo é tratado com respeito, há cuidado. O gelo mostra o quanto o profissional valoriza o que faz e o quanto entende que a beleza do ofício está justamente nas coisas que o cliente não vê.
Por isso, gosto de pensar que o gelo é uma metáfora do próprio bartender. Ambos são moldados pelo tempo e pela paciência. Ambos enfrentam calor e pressão para entregar equilíbrio. E ambos, quando transparentes, revelam o que há de melhor dentro do copo - e dentro de quem serve.
No fim, o gelo é mais do que água congelada: é o fio invisível que liga técnica, estética e sensibilidade. É ele que transforma um líquido em experiência, um gole em memória. E é por isso que, mesmo cansado, mesmo diante de pedidos impacientes, eu ainda explico, quantas vezes for preciso, por que o gelo importa. Porque no gelo está a alma da coquetelaria e quem entende isso, entende que o segredo de um grande drink está justamente naquilo que parece mais simples: a hospitalidade.
* Bartender da região do Vale do Aço, com experiência em bares e eventos.
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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