30 de outubro, de 2025 | 07:00

A pejotização e o risco de desmontar o sistema que sustenta a previdência

Adriana Miranda Felix *


No início de outubro, o Supremo Tribunal Federal ouviu dezenas de vozes sobre uma dúvida que tem impacto direto na vida dos trabalhadores. A audiência pública do dia 6 discutiu a pejotização e o impasse sobre onde esses contratos devem ser julgados — se pela Justiça comum, voltada à forma do contrato, ou pela Justiça do Trabalho, que analisa a realidade da relação e as fraudes contratuais. Embora as prestações de serviço pertençam, em regra, à esfera civil, multiplicam-se os casos de vínculos de emprego disfarçados de parcerias empresariais. Nesses casos, a instância trabalhista é a única capaz de diferenciar uma prestação de serviços legítima de um acordo simulado ou disfarçado apenas para reduzir custos e obrigações. Na prática, o que está em discussão é se o país continuará reconhecendo o valor social do trabalho ou se aceitará a normalização de vínculos mascarados.

O fenômeno ganhou força depois da Reforma Trabalhista de 2017. Empresas substituem vínculos celetistas por contratações via CNPJ, amparadas no discurso da liberdade contratual. Na realidade, é o mesmo trabalhador mascarado na mesma função, cumprindo jornada, metas e ordens, apenas sem férias, 13º, FGTS ou estabilidade. Como consequência, o Ministério Público do Trabalho registrou mais de 1,2 milhão de ações entre 2020 e 2025 questionando esses vínculos. É o retrato de uma dinâmica que se expandiu rápido, sem controle, e que agora coloca em xeque o próprio equilíbrio das relações de trabalho e emprego.

Os impactos econômicos são expressivos. A nota técnica “Impactos fiscais da pejotização no Brasil”, da FGV (2024), estima que a substituição de vínculos formais por contratações via CNPJ retirou R$ 95 a R$ 150 bilhões da arrecadação federal entre 2018 e 2023. Já o estudo “Notas para avaliação dos impactos econômicos da pejotização irrestrita”, elaborado pelo Cesit/Unicamp (2025), demonstra, com base em simulações macroeconômicas, que a pejotização generalizada reduz o PIB no longo prazo, diminui o emprego formal, e amplia a desigualdade, sem ganhos de produtividade ou de arrecadação. A diferença é simples: quem trabalha com carteira assinada contribui, em média, cinco vezes mais para a Previdência do que quem atua como pessoa jurídica. Quando a Justiça do Trabalho é impedida de declarar a nulidade desses "arranjos", a arrecadação cai, o déficit cresce e o custo recai sobre todos.
"Ao julgar a pejotização, o STF decidirá se o país continuará reconhecendo o valor social do trabalho ou normalizará vínculos mascarados"


O discurso da modernização disfarça um desequilíbrio estrutural. A pejotização promete liberdade, mas entrega insegurança. E o trabalhador, transformado em empresa de si mesmo, assume tributos, riscos e instabilidade; perde o acesso a direitos básicos e passa a depender de uma lógica de mercado que o enxerga como empregado substituível por prestador sem garantias. Ao mesmo tempo, o Estado arrecada menos e a empresa obtém uma vantagem temporária. O resultado é um ciclo de curto prazo: custos reduzidos no início, estagnação e desigualdade depois. Ao enfraquecer o consumo e desestruturar a seguridade social, essa dinâmica compromete o crescimento e aprofunda as disparidades.

O problema ultrapassa a dimensão contábil. A pejotização desfigura o sentido social do trabalho. O vínculo deixa de ser espaço de estabilidade e pertencimento e passa a ser tratado como contrato comercial entre desiguais. Quando o trabalhador adoece, engravida ou precisa de descanso, a “empresa de si mesmo” não o ampara. O sistema que deveria protegê-lo se afasta, e o risco individual substitui a proteção coletiva. A Justiça do Trabalho existe para conter esse desvio, interpretando os fatos, não apenas as formalidades. É essa leitura da realidade que impede que o vínculo se torne instrumento de fraude e garante a sobrevivência de um padrão mínimo de dignidade nas relações laborais.

Manter a competência da Justiça do Trabalho é, portanto, uma questão de coerência institucional e de preservação da ordem social. Ela é o ponto de equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, entre inovação e proteção. Sem essa seara especializada, o trabalho formal perde sentido, a Previdência se enfraquece e a modernização vira sinônimo de desamparo. O julgamento do Supremo definirá mais que um conflito de competência: definirá o modelo de país que queremos consolidar.

Se prevalecer a visão de que a forma contratual basta para definir a natureza do vínculo, o Brasil caminhará para a normalização da fraude e para o esvaziamento do sistema que protege o trabalho e os indivíduos na inatividade. Reafirmar a competência da Justiça do Trabalho é, sem dúvida, reafirmar que o trabalho continua tendo um valor social, e merece esse controle institucional de fraude em respeito à ordem conferida pela Carta Maior do Estado.

* Advogada associada do Leal Nogueira Advogados e especialista em Direito do Trabalho desde 2002.

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