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18 de outubro, de 2025 | 07:00

Quando começou a lacração? (ou o ódio que nos une)

Neto Medeiros *


No meio da década de 2010 nos deparamos com uma revolução da comunicação coletiva, afetiva e social, que já contava com recursos como o MSN, o ICQ e outros. Falo do extinto Orkut, que de tão ultrapassado, feito orelhão ou telefone fixo, acabou desaparecendo. Era uma rede social característica por abrigar comunidades (grupos) do tipo “Eu odeio o cavalo branco de Napoleão”. Outro dia vi uma afirmativa no Instagram que me deixou a refletir.

A publicação falava sobre o Orkut e as comunidades que uniam gostos ou desprezos em comum. Qualquer pessoa, que não gostasse de algo, por mais interessante que fosse, jamais iria entrar nas comunidades de determinado assunto. Iam justamente para a comunidade contrária, antagônica, unindo afetos àquela visão dos fatos, na ânsia de buscar a desaprovação comum. E tudo bem...

Hoje, não. Hoje é o ódio que nos une. Quase universal. A gente invade a preferência alheia, na tora, só pra criticar. Somos a geração “hater”. Todo mundo se acha no direito de opinar e, principalmente, de odiar. De ser imbecil ou sádico. Maligno ou nefasto. De tocar o terror mesmo. De banalizar a existência ou as diferenças. De subjugar o diferente - talvez até torturá-lo.
Pra quê cultivar o amor, se posso adorar a dor???

Rotulamos as plataformas como se tivessem vida própria, e não apenas abrigassem a nós - as pessoas reais e comuns. Nós, usuários, humanos e também robôs, reafirmamos falácias e complôs, quase sempre confusos, deslumbrados ou alheios, ainda sem sabermos usar as redes. Gostamos de causar. Achamos que elas são entidades separadas do real, porque nos escondemos atrás dos gadgets e das plataformas, como se o mundo virtual não nos continuasse; como se nosso avatar fosse uma entidade descolada do cotidiano e do tempo. De nós.
“Lá, nas redes, entre lupas, áudios acelerados e confusos algoritmos, podemos exercer nosso pior”


Lá, nas redes, entre lupas, áudios acelerados e confusos algoritmos, podemos exercer nosso pior. Não precisamos do filtro de olhar nos olhos, de sentir a bochecha ruborizada, de ouvir groselhas em tempo real, de evitar se indispor no escritório, de soar bobo na sala de aula ou de parecer imbecil na mesa do bar... Lá, podemos tudo! Podemos todos! Inclusive odiar!

Ainda não aprendemos a usar a vastidão do que nos é oferecido. E, pelo exemplo do finado Orkut, me aflige que tenhamos piorado. Agora, diante da evolução instantânea dos algoritmos e da Inteligência Artificial, me preocupa ainda mais a dúvida sobre o futuro. Pra onde vamos? Por que temos tanto fascínio pelo irreal, pelas fake news, pelos achismos e afins?

Parece mesmo que nossa evolução tecnológica é inversamente proporcional ao nosso instinto coletivo e ao crescimento intelectual. Ao bom senso. Ao senso de empatia e alteridade. Parece cada vez mais raro se condoer pela pessoa ao relento na calçada. Criamos projetos de lei para criminalizar quem as ajuda. E apoiamos isso. Colocar-se no lugar daquele de quem “metemos o pau” na rede social, ao mínimo deslize, já era. Morreu com o Orkut...

Nossa harmonia social, infelizmente, parece estar com os dias contados. Independentemente de cor, crenças e posições econômicas ou culturais. Basta ver os exemplos extremos de brigas e assassinatos, além do crescente movimento de revisionismo histórico, contestando fatos até então consolidados coletivamente - como o terraplanismo e o movimento antivacina, que, diferente do primeiro, compromete a vida de muita gente...

Tenho medo e receio de onde iremos parar. Continuo estudando, vivendo, criando, trabalhando e resistindo. Apesar de ser um caminho sem volta, boicoto ao máximo a tal da Inteligência Artificial, que já é usada há tempos, mas agora avança para uma escala inimaginável de perfeição - e de maneira frenética. Ainda assim, insisto em resistir. Enquanto puder. E persisto querendo sempre ver nosso melhor lado, apesar de a realidade me estapear com o pessimismo rotineiro da vida e das telas.

Eu pesquiso e faço Jornalismo em Quadrinhos. Ele se aproxima de uma corrente jornalística denominada Slow Journalism. É nesse tipo de prática que acredito. Para além da imbricação entre realidade e ficção, essa proposta sugere uma desaceleração da velocidade informacional, romantizando e aprofundando o fato e a pauta, para além das hard news e da necessidade - ou exagero - desse F5 maluco em que vivemos. Essa aceleração contemporânea também contribui para a banalização do outro, para a ansiedade, e nos torna reféns da próxima revolta, lacração, opinião, linchamento, cancelamento e afins. Ainda não entendo quem estabeleceu que devemos comentar tudo ou buscar a próxima lacração.
“Às vezes é preciso pausar ou voltar para continuar seguindo”


Lá em casa a gente nunca cultivou o hábito de almoçar à mesa. E isso era sempre um tema recorrente, embora soubéssemos que era bom para a integração familiar. Ainda assim, nunca praticávamos aquele momento, somente em raras ocasiões - como o Natal, por exemplo. A preferência era comer em frente à tela sedutora e, até então, “solitária” e soberana da TV.

Acredito que hoje isso seja ainda mais raro - assistir à TV sem outra tela na mão e seu scroll infinito. Talvez devêssemos mesmo voltar um pouco ao analógico, desacelerar, ou começar a levar o jornal e alguns livros pro banheiro com mais frequência, em vez do celular. Tentar viver mais o real, talvez. Talvez devêssemos pisar um pouco mais no freio. Daí, talvez, e só talvez, pensássemos um pouco mais antes de lançar a flecha da contenda, da lacração, da opinião inútil e maldosa. E, quem sabe, passássemos a cultivar outros valores, como sorrir com a piada sem graça do amigo. Ou procurar algo cultivado em comum, como as extintas comunidades do Orkut. Às vezes é preciso pausar ou voltar para continuar seguindo. Sem pressa.

* Jornalista, mestre em Comunicação, ilustrador e escritor.

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