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13 de setembro, de 2025 | 08:01

Internação involuntária em Ipatinga

Marco Túlio Dias *


Sancionada no dia 6 de agosto de 2025, e de autoria do vereador Matheus Braga (Democracia Cristã), a Lei nº 5.176/2025 instituiu, no município de Ipatinga, a internação involuntária como política pública para o tratamento de pessoas em situação de rua com dependência química. A proposta foi aprovada pela Câmara Municipal mesmo diante de parecer jurídico contrário emitido pela própria Casa Legislativa.

Historicamente, as internações em saúde mental foram utilizadas como instrumentos de exclusão social e negação da cidadania àqueles rotulados como loucos. Nessa perspectiva, Michel Foucault argumenta que a psiquiatria não surgiu com o propósito de proteger o louco ou garantir sua liberdade, mas sim como expressão dos interesses de uma sociedade que buscava exercer controle sobre o indivíduo, utilizando a condição de alienação como justificativa para afastar aqueles que contrariavam os costumes e a moral vigentes.

Em Ipatinga, uma cidade formada sob a lógica de uma sociedade industrial, marcada por castas e classes, a medida legislativa aprovada se alinha à engrenagem que sustenta a forma de pensar o espaço urbano: um ambiente voltado ao controle, à maximização do lucro e à submissão dos corpos que dele destoam.

Nos últimos anos, tem se tornado evidente o crescimento progressivo da população em situação de rua, do uso abusivo de substâncias psicoativas e da exposição à hipervulnerabilidade. Da região da Lagoinha, em Belo Horizonte, à avenida Maanaim, em Ipatinga - áreas marcadas por alta concentração de pessoas nessas condições - algo permanece constante: o contínuo desrespeito aos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988 a essa parcela da sociedade.

Para o geógrafo Milton Santos, todo cenário socioespacial que escapa ao projeto originalmente concebido para a cidade, transforma-se, em seus termos, em "rugosidade": um resquício do passado que se impõe como obstáculo ao ideal civilizatório e modernizador do planejamento urbano. Nesse contexto, a retirada abrupta dessas populações passa a ser vista, pela lógica do poder dominante, como uma ferramenta legítima de higienização social.

Dessa forma, a proposta de internação involuntária em Ipatinga se revela atentatória aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade. Além disso, uma análise jurídica mais aprofundada evidencia o caráter superficial da regra e a ausência de embasamento sólido que a sustente.

O projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal de Ipatinga reproduz dispositivos da Lei Federal nº 13.840/2019, que já disciplina a internação involuntária em âmbito nacional, configurando invasão da competência privativa da União (art. 22 da CF) e desrespeito às balizas constitucionais de repartição de competências legislativas, especialmente as do art. 30 da Carta Magna.
“A proposta de internação involuntária em Ipatinga se revela atentatória aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa”


Em contrapartida, diante do expressivo e contínuo aumento da população em situação de rua em Ipatinga, cabe questionar: o poder público municipal tem voltado sua atenção à formulação de políticas públicas de assistência social? Iniciativas transversais que dialoguem com o acesso à saúde, à educação, à cultura?

A verdade é que os ocupantes de cargos eletivos preferem maquiar uma realidade complexa com propostas superficiais, inconstitucionais e marcadas por um viés higienista. Afinal, é preciso lembrar que Barbacena, a cidade-manicômio que testemunhou a morte atroz de 60 mil vidas brasileiras, fica logo ali.

Nesse contexto, é preciso compreender que o projeto de lei aprovado não está deslocado de seu tempo político, ao contrário, insere-se como mais uma engrenagem no processo de desmonte das políticas públicas antimanicomiais, caracterizadas sobretudo a partir do mandato de Michel Temer, em 2017. Esse movimento deu concretude a contrarreformas na política de saúde mental, consolidando uma abordagem marcada pelo viés punitivista e excludente.

Stella do Patrocínio, poetisa brasileira que viveu em situação de internação involuntária de 1962 até sua morte, em 1992, expressou, em suas palavras, o vazio existencial imposto por essa condição: "Não tinha onde fazer nada dessas coisas [...] fazer cabeça, pensar em alguma coisa; ser útil, inteligente, ser raciocínio; não tinha onde tirar nada disso; era espaço vazio puro." Sua fala revela a brutalidade do confinamento e o apagamento subjetivo a que são submetidas tantas pessoas sob esse regime.

Por isso, é fundamental aprofundar o debate sobre a realidade das pessoas em situação de rua, tratando a problemática a partir de uma perspectiva fundamentada e amplamente discutida, pois, para além de uma questão social, trata-se também de uma demanda racial: segundo levantamento da UFMG realizado em 2023, 68,10% da população em situação de rua é composta por pessoas negras.

Para Neuza Santos (1983), importante psiquiatra e psicanalista brasileira, a sociedade escravagista estabeleceu um lugar social para a pessoa negra, determinando tanto a forma como ela é tratada quanto como deve se portar, instituindo um paralelismo entre a negritude e uma posição social inferior. Por esse motivo, segundo a autora, é inadmissível qualquer tentativa de reduzir a pessoa negra à condição de objeto de tutela.
“Análise jurídica mais aprofundada evidencia o caráter superficial da regra e a ausência de embasamento sólido que a sustente”


Portanto, a concretização da Lei nº 5.176/2025, em Ipatinga, assume um caráter manifestamente manicomial. Aliás, quanto o município tem investido, de fato, em políticas públicas de assistência social nos últimos anos? Houve um debate amplo com os setores da sociedade civil? E, sobretudo, as categorias profissionais diretamente envolvidas na temática, como médicas, assistentes sociais, psicólogas etc., foram devidamente ouvidas?

Apresentar uma proposta ineficaz e materialmente ilegal para lidar com uma questão de múltiplas ramificações sociais é como tentar apagar um curto-circuito jogando água, sem antes desligar a energia. O projeto de lei sobre internação involuntária em Ipatinga é um "novo que já nasce velho", como cantou Marcelo Yuka (2003), e não merece, sob nenhum aspecto, prosperar.

Dessa forma, o que se impõe é a urgência de políticas públicas verdadeiramente comprometidas com a dignidade das pessoas em situação de rua, construídas com participação social, enraizadas no cuidado e guiadas por uma escuta qualificada.

Como ensinou Nise da Silveira, é no reconhecimento da subjetividade que se abre espaço para a cura, não apenas dos indivíduos, mas também da própria sociedade. E, para que esse processo tenha início, é preciso romper com o preconceito que ainda estrutura práticas, olhares e decisões públicas. Assim, não há caminho legítimo fora do respeito, do diálogo e da humanidade.

* Advogado, artista, e intelectual do Movimento Negro em Minas Gerais. Seus trabalhos podem ser acompanhados por meio do instagram: _negromar e @coletivonegrovda.

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