
30 de julho, de 2025 | 06:58
Quando os papéis se invertem: filhos que abandonam pais idosos podem ser responsabilizados judicialmente
Livia Ribeiro Alves dos Santos *
Vivemos tempos em que o envelhecimento da população brasileira nos impõe novos olhares sobre os vínculos familiares. Um deles diz respeito à responsabilidade dos filhos pelos pais idosos, especialmente quando esses se encontram em condição de fragilidade emocional, física ou até mesmo financeira. Em meio a essa circunstância, ganha importância um tema que, embora bastante sensível, é cada vez mais recorrente no Poder Judiciário: filhos que abandonam seus genitores.
A legislação brasileira é clara quando diz respeito aos direitos dos idosos: os filhos maiores têm o dever de amparar seus genitores. Essa obrigação está expressa no artigo 229, da Constituição da República, nos artigos 1.694 e 1.696, do Código Civil, e do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) que, por sua vez, reforça que a família, a sociedade e o Estado devem atuar conjuntamente para assegurar ao idoso, com prioridade absoluta, os direitos fundamentais à vida, à saúde, ao respeito e à dignidade.
Mas o que ocorre quando esse dever é ignorado pelos filhos? O Poder Judiciário tem reconhecido que o abandono afetivo e material de idosos configura violação de dever legal e moral/afetivo. Há casos em que filhos foram condenados ao pagamento de pensão alimentícia a genitores idosos, como forma de compensar a ausência de assistência e garantir a subsistência material desses familiares. Por outro lado, há também decisões que afastam essa obrigação. É o caso em que o pai ou a mãe, durante a vida, não exerceram minimamente o papel parental, rompendo o elo de solidariedade que dá suporte ao dever alimentar.
Um exemplo emblemático é o julgamento ocorrido no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que negou alimentos a um pai idoso que havia comprovadamente abandonado os filhos desde a infância. No acórdão, os magistrados foram incisivos ao afirmar que "a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória", reconhecendo que não há como exigir solidariedade de quem jamais a recebeu.
Em outra decisão, desta vez do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), uma idosa acamada e em situação de vulnerabilidade social foi acolhida em instituição de acolhimento e longa permanência, após constatação de abandono por parte da filha. O Tribunal estadual ressaltou que, diante da omissão familiar, caberia ao Estado agir para proteger a dignidade da pessoa idosa, mesmo que isso signifique a judicialização da assistência.
Nesse último caso, a decisão baseou-se em dois fundamentos principais: (I) o dever solidário de proteção ao idoso, a partir do artigo 230, da Constituição da República, e o artigo 3º, do Estatuto do Idoso, que impõem ao Estado, à família e à sociedade o dever conjunto de garantir, com prioridade absoluta, os direitos fundamentais dos idosos, e (II) a situação de risco e abandono comprovado. Os relatórios sociais apontaram que a idosa estava sem suporte familiar, pois a única filha não prestava qualquer tipo de auxílio, a idosa vivia sozinha, com feridas nas pernas, desnutrição e confusão mental, a ajuda que a idosa receberia era apenas de vizinhos, corria risco iminente de morte, já tendo, por exemplo, deixado o gás aberto por dois dias seguidos.
Diante desse cenário, a atuação imediata do Poder Público foi considerada indispensável para garantir a sobrevivência da idosa, ainda que a responsabilidade material principal fosse da filha. Isso não significa que o Estado assuma de forma definitiva essa responsabilidade, mas sim que ações emergenciais devem ser tomadas para proteger o mínimo existencial da pessoa idosa. Posteriormente, é possível que o ente público ajuíze ação de regresso contra a filha, buscando a responsabilização por sua omissão.
A legislação brasileira é clara quando diz respeito aos direitos dos idosos: os filhos maiores têm o dever de amparar seus genitores
Importante destacar que em casos de ação em geral, nos termos do artigo 12, do Estatuto do Idoso, o pedido judicial de alimentos pode ser feito em face de um dos filhos, conforme o critério do idoso. A escolha pode recair sobre aquele que disponha de melhores condições financeiras ou maior disponibilidade de cuidado. Caso isso ocorra, o filho demandado poderá exercer o direito de regresso contra os demais coobrigados, dividindo com eles o encargo que, por lei, é solidário.
Como regra, o dever de cuidado dos filhos em relação aos pais idosos é claro e inafastável. A Constituição da República estabelece que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Esse mandamento encontra correspondência direta nos artigos do Código Civil e do Estatuto do Idoso.
Quando os filhos se omitem diante da necessidade de seus pais idosos, seja no aspecto afetivo, seja no campo material, devem ser responsabilizados judicialmente por essa ausência de auxílio. O envelhecimento não retira da pessoa sua dignidade, ao contrário, exige uma atuação mais comprometida da família e do Estado para assegurar-lhe uma vida com dignidade, qualidade e respeito.
O abandono de idosos não é apenas uma injustiça silenciosa, mas uma violação do dever legal de cuidado. A atuação do Poder Judiciário em casos como os mencionados representa um avanço na efetivação dos direitos fundamentais da pessoa idosa. E, mais do que isso, evidencia que o Direito pode ser um instrumento de reparação e proteção da dignidade humana.
* Advogada da área de direito de família e sucessões do escritório Suzana Cremasco Advocacia
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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