
27 de junho, de 2025 | 07:30
Zema e Padre Júlio Lancellotti
Antônio Nahas Júnior *
Há algumas semanas, o governador Romeu Zema declarou sua insatisfação com o crescimento da população de rua nas grandes cidades mineiras. O incômodo governador não era pelo agravamento desta tragédia social, mas pelo desconforto causado pelos moradores de rua à população que reside nas áreas próximas onde eles se alojavam.O governador relata casos de pessoas idosas residentes nas redondezas onde estes sem teto se abrigam, que se sentem incomodadas com a presença destes sem teto. Chegou até a pensar em leis que viabilizassem a retirada destes deserdados para outros locais. E até especulou que morar na rua teria se transformado num estilo de vida...
Ao ler esta declaração, não pude deixar de pensar na missão da qual se encarregou o Padre Júlio Lancellotti, coordenador da pastoral do Povo da Rua de São Paulo, que há mais de 25 anos exerce a função de pároco na zona leste de São Paulo. Padre Júlio protagonizou há pouco tempo um episódio emblemático: brandiu uma ótima marreta para destruir os obstáculos que tinham sido colocados sob viadutos pela Prefeitura de São Paulo, para impedir que os moradores de rua utilizassem estes recantos para dormir. E saiu vencedor: a prefeitura removeu todos.
Ele cuida de quem nada possui e não tem quem os defenda: imigrantes; sem teto; refugiados; pessoas incapazes e abandonadas; menores infratores; detentos em liberdade assistida. Aqueles seres humanos que migram sem esperança pela existência. Sua missão está narrada de forma singela, mas forte e tocante, no seu livro Amor à Maneira de Deus (Editora Planeta do Brasil).
Pois bem. Neste livro, Padre Júlio relata seu encontro nada menos com o ex-governador Paulo Maluf. À época, Maluf exercia o cargo de prefeito de São Paulo. Representava o que havia de mais conservador na política brasileira. O encontro foi provocado quando a Pastoral de Rua redigiu um manifesto assinado pelo renomado arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, protestando contra o atropelamento e morte de um menino de rua por um caminhão de limpeza pública da prefeitura. "Ali no guichê, avisei que havia sido assinado pelo arcebispo e acrescentei: 'Se esta situação não parar o arcebispo vai vir aqui em pessoa'”.
E sua fala chegou a Maluf, que marcou encontro com Dom Paulo Evaristo. E Padre Júlio relata: "O clima na cúria estava tenso. Havia um batalhão na imprensa à espera do prefeito, que chegou acompanhado de seu assessor e do secretário de assistência". Na sala, Maluf fez um discurso para o arcebispo, que esperou o prefeito dizer tudo e se pronunciou:
Agora quem vai falar é o padre Júlio, porque ele é o responsável pelo povo de rua”.
E quem esperava ideologia ou indignação do padre Júlio se surpreendeu: seu discurso foi de um pragmatismo absoluto. Agiu como legítimo representante da população de rua:
Prefeito, não sei se o senhor sabe, mas muitos moradores de rua são eleitores. E muitos são seus eleitores... Que o senhor mantenha a cidade limpa, está todo mundo de acordo. Mas que o senhor mantenha a cidade limpa com as mãos sujas de sangue, isto não vamos aceitar”.
A democracia se constrói a partir de soluções que beneficiem a todos; medeiem os conflitos e façam valer a opinião da maioria”
A partir daí, padre Júlio começou a relatar as inúmeras ações assistenciais desenvolvidas pela pastoral, que atendiam a população de rua. E mais: muitas destas ações eram realizadas nos programas assistenciais mantidos pela própria prefeitura, a maioria deles desconhecidos por Maluf. E aproveitou o momento para sugerir novas ações: "Quantos banheiros públicos tem São Paulo? Quantos desses são acessíveis à população de rua?", indagou.
Padre Júlio não perdeu a viagem: aproveitou o momento para enumerar tudo que poderia ser feito para atender seu público. E notou que tanto o prefeito quanto os assessores estavam completamente surpreendidos e tomavam notas, pois nunca tinham ouvido aquelas verdades.
Ao final, seu assessor comentou que o encontro tinha sido impressionante e que Maluf nada conhecia daquilo.
O pedestal do poder - este diálogo entre extremos da sociedade, entre poderosos e despossuídos, revela que sempre é possível construir caminhos e buscar soluções, mesmo em situações aparentemente impossíveis. No caso do governador Zema, quem sabe isto também seja possível. Afinal, o governador se preocupa apenas com uma parte da população, que sofre com os incômodos causados pelos moradores de rua.
Mas o fato dos moradores dormirem no chão; no frio; não terem acesso a banheiro; não terem onde colocar suas roupas e pertences; passarem o dia em busca de comida, não surge para ele como um problema. Os excluídos e marginalizados são parte do sistema capitalista. E, infelizmente, seu número deve aumentar pois as constantes transformações tecnológicas e sociais destroem empregos e profissões; economizam trabalho, poupam mão de obra. A Inteligência Artificial vai agravar ainda mais este quadro.
E este é o papel da política: tornar públicas as reivindicações das partes; trocar e amadurecer ideias; propor soluções que atendem a toda a sociedade. E não apenas a um setor.
A democracia se constrói a partir de soluções que beneficiem a todos; medeiem os conflitos e façam valer a opinião da maioria.
Que Minas Gerais abra os olhos para seus problemas e seja liderada por quem saiba enfrentá-los.
* Empresário. Economista. Morador de Ipatinga
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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