31 de maio, de 2025 | 07:30
Remédios emagrecedores: manipulado não é falsificado
Claudia de Lucca Mano *
No dia 26/5, uma notícia veiculada no Jornal Nacional sobre medicamentos emagrecedores do tipo GLP-1, dentre eles tirzepatida e semaglutida, suscitou uma perigosa confusão: a de que produtos manipulados em farmácias seriam equivalentes a produtos falsificados. A reportagem ouviu apenas especialistas ligados à indústria farmacêutica e sugeriu que a manipulação desses medicamentos favoreceria o comércio ilegal de canetas falsificadas. Trata-se de uma inferência equivocada e grave.Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que a manipulação de medicamentos não é sinônimo de falsificação. Falsificação é crime. Manipulação é prática farmacêutica regulamentada por lei. Confundir as duas coisas ou induzir o público a essa confusão compromete o debate público e reforça a narrativa de um setor econômico interessado em eliminar a concorrência.
Diferentemente do que foi sugerido, a existência de patentes sobre moléculas como a semaglutida e a tirzepatida não impede a manipulação individualizada desses princípios ativos, conforme previsto no artigo 43, inciso III, da Lei de Propriedade Industrial (nº 9.279/96). A norma é clara: a proteção patentária não se aplica ao preparo de medicamento sob encomenda, em doses individualizadas, feito por profissional habilitado para atender a prescrição de um profissional de saúde.
"Não se sustenta o argumento de que a manipulação desses ativos seja uma infração sanitária"
As farmácias de manipulação seguem, para aquisição e uso de insumos, rigorosos procedimentos de controle de qualidade. Os princípios ativos, geralmente importados, chegam ao país acompanhados de laudos emitidos pelos fabricantes. Os distribuidores refazem todos os testes laboratoriais incluindo análises de identidade, pureza, microbiologia e conformidade com padrões físico-químicos antes de repassar o insumo às farmácias. Esse mesmo caminho é percorrido pela indústria farmacêutica. Nenhuma das duas, vale lembrar, conta com análises diretas feitas pela Anvisa. O papel da agência é fiscalizador e regulador, não de reprodutor de testes laboratoriais de cada lote.
Também não se sustenta o argumento de que a manipulação desses ativos seja uma infração sanitária. A Anvisa já esclareceu publicamente que não é infração manipular medicamentos como tirzepatida e semaglutida, desde que os insumos utilizados sejam equivalentes aos constantes nos medicamentos industrializados registrados como Ozempic, Wegovy ou Mounjaro e que haja prescrição médica. Essa é uma prática legal e amplamente difundida, inclusive recomendada em contextos onde a dosagem precisa ser ajustada às necessidades individuais do paciente. O custo acessível também pesa na decisão do consumidor pela manipulação.
Confundir essa prática legal com o crime de venda de canetas injetoras falsificadas é uma temeridade. Produtos como os vendidos ilegalmente por influenciadores nas redes sociais são, de fato, um risco à saúde pública. Mas é preciso deixar claro: esses produtos não vêm de farmácias de manipulação. Essas farmácias não comercializam canetas prontas, e sim ampolas ou frascos-ampola, para uso com seringas sob prescrição. A venda direta ao consumidor de medicamentos sem prescrição ou de origem clandestina é crime e esse crime não pode ser atribuído, nem por aproximação, a estabelecimentos legalizados e regulamentados.
A indústria farmacêutica, naturalmente, tem interesse em manter o monopólio sobre medicamentos de alto custo e forte demanda, e tem todo direito de defender suas patentes contra exploração indevida. No entanto, a imprensa não pode atuar como porta-voz exclusiva de um lado dessa equação. Ao tratar de temas que envolvem saúde pública, é preciso rigor, equilíbrio e o compromisso com a verdade. Os milhões de brasileiros que recorrem a medicamentos manipulados seja por necessidade clínica, seja por inviabilidade financeira de comprar os produtos industrializados merecem uma cobertura que os respeite, e não que os desinforme.
* Advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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