16 de maio, de 2025 | 07:00
Veredas globais: Camões, Cervantes e Rosa na política do espírito
Leonidas Oliveira *
Dizer Guimarães Rosa no Brasil de 2025 é acender um fósforo dentro de um datacenter: o clarão dura pouco, mas lembra que, na era dos algoritmos, a palavra ainda decide quem somos. Ao recolocar Rosa no centro da Bienal Mineira do Livro, Minas reabre diálogo com uma linhagem que atravessa séculos Camões e Cervantes para perguntar que imaginação pode refundar o pacto democrático quando o debate público se esfarela em likes.Camões viu o Império nascer e ranger. Os Lusíadas” transformam caravelas em metáfora da condição humana: navegar é preciso porque o mundo é inconstante. Cervantes escreveu em ruínas semelhantes: Dom Quixote” descobre que os cavalos de batalha viraram moinhos que giram com o vento do capital. Rosa, três séculos depois, faz o sertão ressoar como zona de contato entre mito e motoniveladora. Três tempos, a mesma fissura: quando o real se torna inabitável, o escritor ergue uma língua que o reinscreve no território sensível, devolvendo corpo ao que parecia pó de arquivo digital.
Essa permanência nasce da imanência. Camões planta o épico no sal do mar português; Cervantes finca o romance na poeira de La Mancha; Rosa garimpa léxico novo no cascalho das veredas. Não há exotismo: o local é laboratório de universalidade. A crítica de world‑literature”, de David Damrosch a Pascale Casanova, reconhece na travessia do texto entre línguas a prova da sua potência. Por isso Rosa hoje cabe nas mesmas estantes que Faulkner ou Rulfo: quem decifra nonada” encontra a chave do humano, esteja em estepes asiáticas, arranha‑céus de vidro em Xangai ou vielas de Medellín.
Mas por que convocá‑los agora? Porque a política contemporânea reproduz as polaridades que eles dramatizaram. Camões põe lado a lado conquista e naufrágio; Cervantes, utopia e desengano; Rosa, fé e diabo. Essas tensões recusam soluções binárias a coragem está em habitar o entre. Num Brasil rasgado por bolhas de indignação instantânea, reler esses autores é um exercício de paciência democrática: ensinam que a verdade se adensa nos interstícios e que toda travessia é plural.
A política contemporânea reproduz as polaridades que os grandes escritores dramatizaram”
A metáfora, nesse processo, é ferramenta de sobrevivência. António Lobo Antunes lembra que a literatura é mentira que diz a verdade”; Rosa advertia: viver é muito perigoso”. A mentira literária, ao contrário da fake news”, não oculta a ambiguidade: expõe‑na para que o leitor escolha melhor. Se a inteligência artificial oferece atalhos de decisão, Camões, Cervantes e Rosa oferecem demora e demora é pré‑requisito de responsabilidade. Automatizar o juízo sem burilar o sentido repete o erro de Dom Quixote”: trocar imaginação crítica por um template de honra resulta em cômica desgraça lição preciosa para quem terceiriza dilemas morais a algoritmos que apenas replicam vieses.
Há, ainda, um programa de Estado implícito nessa leitura. Antonio Candido via Grande Sertão” como infraestrutura moral” da vida brasileira. Investir em literatura é construir densidade cidadã, não ornamento. Ao batizar espaços da Bienal de Arena Rosiana ou Espaço Diadorim, Minas e suas instituições culturais, sinaliza que política cultural não é vitrine, mas profundidade pública. O sertão, diz Rosa, é dentro da gente”; o Estado, portanto, precisa cuidar desse interior invisível com a mesma dedicação que consagra ao concreto das estradas que transportam corpos, bens e esperança.
No plano do eu, os três autores desmontam a fantasia da identidade monolítica. Vasco da Gama só se torna herói ao narrar‑se; Riobaldo só se entende conversando com o ouvinte anônimo; Quixote existe no espelho de Sancho. É a lição maior para as redes: nossa subjetividade é relacional. Se o feed é terreno de disputa, precisamos depurar a escuta. Camões obriga a respirar versos longos; Cervantes, a rir de nós mesmos; Rosa, a reinventar o idioma. Cada gesto suspende o reflexo imediato e abre espaço para a elasticidade do pensamento, condição de dialogar com diferenças sem reduzi‑las a caricatura.
Camões advertia que o fraco rei faz fraca a forte gente”. Cervantes definia a liberdade como o bem mais caro que os céus deram aos homens”. Rosa sussurra que o real se dispõe no meio da travessia”. Tomadas em conjunto, as frases compõem um manual de navegação para democracias inquietas: é preciso liderança ética, liberdade crítica e coragem de viver na incerteza. Entre marés, moinhos e veredas, o horizonte permanece comum: atravessar o perigo com imaginação e linguagem.
Minas, que exporta minério de ferro, exporta também minério verbal. Ao celebrar Rosa em 2025, reafirma‑se como território de travessia entre o local e o global. E oferece ao Brasil, cansado de slogans fáceis, a lição mais dura: não há chegada definitiva; há apenas o meio do caminho esse lugar onde a palavra continua riscando faíscas contra a escuridão.
* Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais e doutor em Teoria da Arte e Arquitetura
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