06 de maio, de 2025 | 08:00
Primeira instância e o uso banalizado da prisão preventiva
Arthur Richardisson * Marlon Ricardo Lima Chaves *
A Justiça criminal brasileira sofre com o uso excessivo, que acaba por banalizar, a aplicação da prisão preventiva, sem seguir os critérios estabelecidos pelo Código de Processo Penal (CPP). A situação é mais agravante ainda nos tribunais de origem, geralmente na primeira instância, onde uma medida que deveria ser excepcional é vista com frequência.Segundo dados do último Relatório de Informações Penais (Relipen), da Secretaria Nacional de Políticas Penais, até 31 de dezembro do ano passado, existiam 182.855 presos provisórios no país, que incluem prisões preventivas, temporárias e em flagrantes. São situações de pessoas que ainda não foram condenadas de forma definitiva, mas estão sob custódia enquanto aguardam decisões da Justiça.
O mesmo documento mostra que o Brasil tem uma população prisional de 670.265 e déficit de 175.886 vagas. Esses números evidenciam a sobrecarga do sistema prisional e a escassez de estrutura adequada. A falta de critérios rigorosos na aplicação de prisões provisórias, muitas vezes sem seguir os requisitos do CPP, intensifica ainda mais essa crise no sistema penitenciário.
Em um caso concreto recente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu revogar a prisão preventiva de um homem condenado em primeira instância, ao considerar que a manutenção foi justificada exclusivamente pela pena aplicada. Para os ministros, essa abordagem configurou um constrangimento ilegal, levando à anulação da medida.
O caso foi analisado em um recurso em habeas corpus com pedido de liminar (RHC 212836/RS), relatado pelo ministro Og Fernandes. Segundo o relator, a decisão judicial de manter a prisão cautelar se baseou apenas na duração da pena, de nove anos de reclusão, sem apresentar justificativas concretas para a privação da liberdade antes da condenação definitiva. Diante dessa falta de fundamentação adequada, o colegiado determinou a revogação da prisão.
A decisão do STJ lança luz sobre um problema persistente na Justiça criminal brasileira, especialmente na primeira instância: a aplicação indiscriminada da prisão preventiva, muitas vezes sem fundamentação concreta na sentença condenatória. Essa prática distorce o propósito da prisão preventiva, que deve ser utilizada apenas em caráter excepcional e nunca como antecipação de pena.
Conforme o artigo 387, §1º, do Código de Processo Penal, o juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou não da prisão preventiva” na sentença condenatória. Essa exigência não é uma formalidade, mas, sim, uma proteção ao núcleo essencial do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) e à motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF).
No mesmo sentido, o artigo 312 do CPP diz que a prisão preventiva só se justifica quando preenchidos três requisitos de forma cumulativa: (1) indícios suficientes de autoria e prova da materialidade; (2) necessidade para garantir a ordem pública, a conveniência da instrução criminal ou a aplicação da lei penal; e (3) impossibilidade de substituição por medidas cautelares diversas.
No caso analisado, ao limitar-se a mencionar a pena aplicada como justificativa para manter o réu preso, o tribunal de origem deixou de apresentar uma fundamentação concreta e aprofundada. Em especial, não analisou adequadamente o preenchimento dos requisitos para a prisão preventiva, desconsiderando o princípio da presunção de inocência, garantido pelo artigo 5º, LVII, da Constituição Federal.
Além disso, a decisão contrariou entendimentos já consolidados pelo STF nas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, que determinam que a execução da pena só deve ocorrer após o esgotamento de todos os recursos, conforme previsto no artigo 283 do Código de Processo Penal.
Para o cumprimento da lei, é imprescindível lembrar que a prisão preventiva não pode ser decretada por força da gravidade do crime, pela comoção social ou pela conveniência da acusação. Sua aplicação exige uma análise individualizada e fundamentada, levando em consideração a situação específica do réu e do processo, sempre pautada em fatos concretos e contemporâneos, além do cumprimento cumulativo dos requisitos legais.
Ao ser aplicada indiscriminadamente, como uma extensão automática da sentença condenatória, a prisão preventiva compromete os princípios do sistema acusatório, enfraquece garantias constitucionais e perpetua uma cultura punitivista mascarada de legalidade, legitimando práticas autoritárias sob a aparência de rigor judicial.
* Advogado criminalista, conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e vice-presidente do Observatório Nacional da ABRACRIM
* Advogado Criminalista, Mestre em Direito pela UFMS, Coordenador da Especialização na Defesa em Crimes de Lavagem de Capitais e palestrante
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