11 de fevereiro, de 2025 | 08:00
Um governo sem cara
Gaudêncio Torquato *
As imagens dos Governos são extensões da identidade de governantes e retratam a cara de seu tempo. O trabalhismo era a fotografia de Getúlio. O desenvolvimentismo tinha as feições simpáticas e sorridentes de JK. O janguismo assumia os contornos do esquerdismo oportunista de João Goulart. O janismo juntava regrismo autoritário com independência, a marca de Jânio.O ciclo dos militares fechou o universo da locução, maltratou a cidadania, abriu comportas para projetos como a das telecomunicações e expandiu o gigantismo do Estado.
Sarney fez um governo tateante, de altos e baixos, de mudanças na moeda, com o populismo da distribuição de leite para as margens sociais. E abriu os pulmões da sociedade política, fincando os eixos democráticos.
O governo Collor foi um estrondo, marcado por grandes sustos, como o confisco da poupança, marketing pessoal, abertura da economia, diminuição do tamanho do Estado e muitos escândalos. O breve governo Itamar Franco foi marcado pelo Plano Real, responsável pela estabilização da moeda, sob o comando de Fernando Henrique e sua equipe. A seguir, tivemos dois governos de FHC, que tiveram como foco a estabilização e a modernização da economia e a robustez do Estado.
Os governos Lula 1 e 2 focaram as comunidades carentes, com o acesso facilitado ao crédito, e um conjunto de programas sociais. Lula saiu prestigiado. O governo Dilma, que se estendeu de 2011 e 2016, foi marcado pela continuidade de investimentos sociais, mas sufocado por crises econômicas, oposição política, investigação de escândalos de corrupção e pelas pedaladas fiscais”, que motivaram seu impeachment, em 2016.
O governo Temer, de curto período, foi de muitos avanços e de reformas, como a trabalhista. Caracterizou-se, ainda, pelo bom diálogo com o universo político. O arrojo da administração, tocada por uma equipe de perfis de alta qualidade, não foi bem aceito pelo PT, que fez acirrada campanha contra o governante, taxando-o de golpista. Hoje, aquele ciclo é considerado um dos mais avançados da história.
Qual é a cara do atual governo? Assemelha-se a de um bicho de sete cabeças. Ou a uma feição franksteiniana. Faz uma embalagem para produtos antigos, maquiando-os como novos (as Bolsas); na esfera política, é adepto do conceito franciscano (é dando é que se recebe”), desloca-se do canto esquerdo do arco ideológico e se aproxima do centro, sob a fúria de grupos petistas que teimam em defender a revolução socialista”.
"A globalização cede lugar ao ideário do nacionalismo, fechamento de fronteiras, tarifas escorchantes, deportação de imigrantes e expansão das tensões"
Na seara econômica, tateia sob a corda bamba, ora garantindo que vai controlar gastos, ora escancarando as portas do cofre do Tesouro para amaciar o coração de apoiadores(?), alguns duvidosos sobre as possibilidades de reeleição do atual governante. Muitos confiam, desconfiando.
Disso tudo resulta a observação: o governo Lula 3 não tem cara. E por que não consegue modelar suas feições? Porque continuou embalado nas ondas do passado, sem constatar que o mundo mudou desde janeiro de 2003, quando se sentou pela primeira vez na cadeira presidencial.
A globalização, a grande árvore que abrigava os interesses das Nações, cede lugar ao ideário do nacionalismo e consequente fechamento de fronteiras, restrição do comércio multilateral, tarifas escorchantes para a importação de produtos, deportação de imigrantes e expansão das tensões. Começa-se a ver, aqui e ali, contrariedade às políticas predatórias, como a dos EUA, sendo a China a protagonista principal, com certo apoio dos países europeus, que veem com desconfiança o comportamento irado do presidente da maior democracia ocidental. A cara fechada de Donald Trump é a imagem de um mundo em estado de uma Guerra Fria, que impõe novos padrões geopolíticos.
Tais padrões são embasados na volta à direita de nações, que, até pouco tempo, ostentavam, o facho do neoliberal. Países centrais e periféricos estão sendo seduzidos por valores da direita ideológica. Matizes fascistas enfeitam estes novos caminhos. O planeta dá uma volta ao passado. Sérgio Villalobos Ruminot, professor da Universidade de Michigan (EUA), é autor de um livro muito oportuno para compreendermos o nosso tempo Asedios al fascismo Do governo neoliberal à revolta popular”, onde oferece um arsenal para a batalha do presente”).
Trump é o Nero dos tempos modernos, o incendiário que toca fogo em Roma, orgulhando-se de ser o maior gestor dos fazeres mundiais. Cerca-se de radicais. Haja decreto. E haja caneta de tinta grossa para mostrar ao mundo sua assinatura barroca.
Esse é o novo mundo que Lula não quer enxergar. Ainda se considera o cara”, personagem da primeira fila da paisagem, anunciado pelo então presidente Barack Obama durante um evento com governantes de relevo. Luiz Inácio borrou sua imagem com inserções enviesadas sobre o cenário mundial, como o apoio à Rússia em guerra contra a Ucrânia e o conflito na Faixa de Gaza entre palestinos e judeus. Perdeu credibilidade para unificar os integrantes do Mercosul. Sua voz já não faz eco no grupo dos BRICs. E, por último, seu cacife é desprezado pelo maioral dos tempos atuais, o Nero Trump.
Por último, urge dizer que, no plano interno, o presidente é obrigado a fazer mais concessões aos integrantes do Congresso, os quais, na prática, sinalizam com a adoção do semipresidencialismo, o sistema que exerce funções executivas, deixando o presidente com as vestes de Chefe de Estado (Davi Alcolumbre e Hugo Motta seriam dois primeiros-ministros...).
É oportuno lembrar o lema de uma empresa de transportes: o mundo gira e a Lusitana roda”. Concluo: os desatentos costumam perder o bonde da história.
* Escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
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