19 de janeiro, de 2025 | 07:00

Quando as águas invadem a fragilidade humana

Mauro Falcão *

A chuva, em sua força devastadora, carrega consigo mais do que água e lama; traz um convite à reflexão sobre a vulnerabilidade humana e os limites de nosso controle. Quando os rios sobem, rompendo margens e invadindo vidas, somos forçados a sair da redoma de nossas rotinas, confrontando realidades que muitas vezes preferimos ignorar. É na adversidade que percebemos o quanto dependemos de um equilíbrio delicado que, ao se desestabilizar, expõe nossa fragilidade.

A água, que em sua medida certa é fonte de vida e prosperidade, transforma-se, no excesso, em metáfora do caos. Ela invade não apenas casas e ruas, mas também o território interno de nossas certezas, fazendo emergir questões filosóficas sobre a transitoriedade da existência e o valor da solidariedade. O fluxo das enchentes nos arrasta para fora do individualismo, forçando-nos a olhar para o outro e reconhecer que, diante da natureza, somos todos iguais: vulneráveis e interdependentes.
“A água, que em sua medida certa é fonte de vida e prosperidade, transforma-se, no excesso, em metáfora do caos”


Há algo profundamente paradoxal nas tragédias. Elas revelam uma potência oculta, uma força coletiva que brota em meio ao desastre. Quando as águas unem seus destinos ao nosso, somos compelidos a agir juntos, transcendendo diferenças. Nesse movimento, encontramos um sentido maior, uma espécie de inteligência cósmica que nos lembra que a vida não é apenas sobrevivência, mas também convivência e colaboração. Por mais destrutivas que sejam, iluminam as desigualdades que tentamos esconder sob o manto do cotidiano. Aqueles que sempre viveram à margem – das águas e da sociedade – tornam-se mais visíveis. As tragédias revelam a precariedade enfrentada por muitos diariamente, mesmo em tempos de calmaria. O alagamento que atinge a todos igualmente é, para os mais vulneráveis, apenas a amplificação de uma luta contínua por dignidade.

Nesse encontro entre a tempestade e a limitação humana, vislumbramos um chamado maior: compreender que a natureza, embora furiosa, também nos oferece uma lição. Ao transpor barreiras físicas e emocionais, exige de nós uma renovação de espírito e um compromisso ético com a reconstrução – não apenas de casas e ruas, mas também de nossas relações com o próximo e com o planeta. Afinal, se os rios são capazes de transbordar, que também transbordem em nós a solidariedade e a compaixão.

* Escritor brasileiro / E-mail: [email protected]

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