27 de outubro, de 2024 | 09:00
A fé e o fuzil
Antônio Nahas *
O último censo do IBGE sobre as religiões revela o grande crescimento dos evangélicos na nossa região, cujo número era muito próximo ao total dos católicos já em 2010. E o número de templos e igrejas na região - Ipatinga, Santana do Paraíso, Fabriciano e Timóteo - chegou 1.314 em 2023, conforme publicou o Diário do Aço. E no Brasil a mesma coisa aconteceu. Este crescimento dos evangélicos foi relatado no extraordinário livro A FÉ E O FUZIL, do jornalista Bruno Paes Manso. O escritor e pesquisador mergulhou fundo nessa história. Frequentou igrejas diversas; entrevistou personagens; entendeu seus valores; seus medos; seus propósitos e até entrou em curso on line para melhor entender o universo teológico destas religiões. Visitou penitenciárias; entrevistou convertidos. Estudou com tempo, vontade e sem preconceitos. Seu estudo revela um Brasil pouco conhecido para nós.A fé
O autor centra suas atenções em São Paulo. Retrata o imenso movimento migratório - do campo para as cidades, ocorrido no Brasil entre as décadas de 30 a 90, não apenas no nordeste mas em outros estados, como Minas Gerais. "Havia fome, períodos longos de seca. Faltava perspectiva para milhares de pessoas que viviam presas a perpetuar a história e a miséria dos seus antepassados".
Naqueles tempos, na falta da TV, as estações de rádio divulgavam as maravilhas do sudeste, sobretudo São Paulo, estimulando a migração de milhões de pessoas. Mesmo com uma casinha isolada no meio rural, os moradores passaram a conhecer outras possibilidades de vida e a sonhar com elas. Não foram poucos que venderam suas pequenas propriedades e partiram para São Paulo. Foi uma grande onda. Na década de 1940, 69% dos brasileiros viviam nas zonas rurais. Em 2010, 84% dos brasileiros eram urbanos. Um dos maiores movimentos migratórios do planeta.
Os migrantes viviam amontoados nas periferias das grandes cidades, sem apoio algum. Casas precárias; faltava água; saneamento; transporte adequado; saúde, educação. Uma tragédia sem tamanho, que alterou completamente os valores e o modo de vida daquelas pessoas. Basta ver os dados de criminalidade de São Paulo. Em 1960, eram 6 casos por cem mil habitantes, alcançando 17 por cem mil habitantes em 1980 até saltar para 65 por cem mil habitantes em 1990, quando começaram a cair. Como diz o autor, "a curva de homicídios revelava uma transformação moral, que tornara corriqueiro um dos grandes tabus das civilizações." Era uma terra sem lei, onde os assassinatos ocorriam por discussões fúteis, ciúmes, brigas de rua. E proliferavam os Justiceiros e os Esquadrões da morte, como resposta ao crescimento dos furtos e roubos.
É neste ambiente de violência, carência, ausência de leis e mudança de valores que emerge e cresce o pentecostalismo, preenchendo uma enorme carência dos novos migrantes. Estes buscavam acolhimento; vida social; esperança na fé, alguma assistência, para continuarem a sobreviver neste mundo desconhecido e instável.
Os pentecostais vinham com uma pregação religiosa bem prática, alicerçada na esperança de um futuro melhor. Segundo o autor, suas vozes procuravam explicar o caos urbano e a crise dos valores sociais, pela presença do Diabo no mundo, muitas vezes exemplificada pela prática dos cultos de origem africana. As igrejas estavam voltadas a oferecer respostas teológicas e soluções práticas aos desafios cotidianos. "Com os pentecostais, o poder divino era mais palpável, já que a alegada ação do espírito santo podia se revelar de forma física, no corpo dos fiéis, pela glossolalia (capacidade de falar línguas desconhecidas quando em transe religioso) ou pela cura das doenças, muitas delas provocadas pelos espíritos endemoniados..."
A presença do diabo no mundo ajudava a explicar o caos das cidades e os pentecostais indicavam os caminhos para livrar-se deles. E eram adeptos da chamada Teologia da Prosperidade e assumiam a fé como instrumento para isto. O dinheiro deveria ser valorizado ao invés de condenado. A prosperidade deveria ocorrer durante toda a vida. O dinheiro era uma benção quando voltado para a obra de Deus e não uma maldição.
Já em 1950, os pastores passaram a usar suas rádios para curar os ouvintes e fazer milagres. A Igreja Quadrangular foi pioneira, seguida pelos missionários brasileiros Manoel Mello, da Igreja Cristo para o Brasil. Em 1989 Edir Macedo e a Igreja Universal comprariam a Rede Record, transmitindo seu olhar nos programas, nas novelas, nos jornais.
O resultado foi este: Em 2022 haviam 178.511 templos no Brasil. A Assembleia de Deus liderava o ranking com 43.578 unidades, seguida da Batista (19.692;) Universal (7.505) e Quadrangular, com 5.586 templos. O primeiro lugar ficou com as Igrejas independentes: 78.560 templos, que não se enquadravam em nenhuma das grandes denominações brasileiras, sendo fortemente vinculadas ao carisma do seu fundador.
Foi em um ambiente de violência, carência, ausência de leis e mudança de valores que emerge e cresce o pentecostalismo, preenchendo uma enorme carência dos novos migrantes”
O fuzil
Ao mesmo tempo que cresciam as igrejas evangélicas, prosperava e se estruturava o crime organizado. O caos das periferias, onde os furtos e homicídios viraram rotina acabou sendo disciplinado e estruturado pelas gangs originadas em presídios, local de aprendizado e reflexão. O crime organizado acabou por funcionar como uma espécie de agencia regulatória do crime, segundo o autor.
Os grupos e gangues passavam a proteger os bairros por eles dominados e até mesmo fazer ações sociais que melhorassem a vida de todos: consertar pontes; melhorar acessibilidade e impedir roubos ou assassinatos, que passaram a ter regras claras para acontecer.
O autor centra sua análise no PCC, fundado nas prisões em 1993, que elaborou seu estatuto com dezesseis artigos, cuja referência foram os Dez Mandamentos. As regras buscavam produzir certa unidade de valores entre os integrantes, lembrando a estrutura das Irmandades católicas. Montaram uma estrutura eficiente para punir os desviantes, até mesmo dentro do sistema penitenciário. Era ali que se dava a reflexão e elaboração do novo mundo. E a nova ordem produzia ganhos reais. Evitava a ação da polícia; reduzia a imprevisibilidade dos negócios integrais e ampliava as oportunidades e margens de lucro. Surgiu um novo lema a orientar a ação de todos: "É preciso estar do lado certo, mesmo numa vida errada".
"O mais surpreendente", revela o autor, "é que a solução emergiu exatamente do contexto em que os conflitos eram gerados. Homens presos e moradores de bairros violentos passaram a promover, em seu cotidiano, outra forma de existência das suas masculinidades ameaçadas. Uma nova ética do crime prevalecia sobre a honra pessoal dos matadores, que começaram a ser tachados de covardes e egoístas."..."E de onde se esperava perversão e crueldade surgiram as ideias para solucionar os desafios desse mundo caótico”.
Em muitos casos, estes dois mundos se conectaram. Alguns líderes do crime organizado aproximaram-se dos evangélicos, como forma de dar sentido às suas ações: combater o mal; afastar o diabo, numa luta do bem contra o mal, levantando bandeiras do Velho testamento.
Origina-se deste movimento o batismo de algumas comunidades como "Complexo de Israel", no Rio de Janeiro, com filiais por todo o Brasil.
Permaneceram também as milícias e milicianos, que acumularam poder político e entrelaçaram suas ações com o crime organizado, agindo na defesa de loteamentos clandestinos, promovendo assassinatos políticos, facilitando o tráfico de drogas e conformando alianças para obter poder político, o que foi conseguido com sucesso.
A política
O próximo e previsível passo destes dois mundos - o crime organizado e os evangélicos - foi dado de forma independente e temporalmente distinta, pelos dois lados: a participação na política. No Brasil atual, os evangélicos formam uma força política decisiva. E, de forma um tanto embuçada, o crime organizado também. Decisões políticas vitais para a nação são influenciadas, o que, muitas vezes, passa de forma despercebida. E conclui o autor:
"Tanto o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para os pobres, que produziam novos discursos capazes de reprogramar as mentes. O novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar. Elas nasciam da miséria, nas ruas esburacadas das periferias, nas igrejas evangélicas e nas prisões, e eram maneiras alternativas de gerar ordem e propósito, que, nas décadas seguintes, ajudariam a definir o futuro brasileiro".
Evidentemente o autor absolutiza nestas conclusões. Há outros atores importantes que também influenciaram o período: os padres da Teologia da Libertação, formando comunidades eclesiais de base (Cebs); as intervenções das diversas instancias governamentais, que levaram substanciais melhorias às comunidades; a organização dos partidos políticos e de associações e entidades comunitárias. Foi - e está sendo - um processo longo, complexo, não linear. Concordando ou não com o autor, é um livro muito valioso. Aprendi muito com a leitura. Ajuda bastante a compreender nossas cidades.
* Economista, historiador, empresário. Morador de Ipatinga
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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Higor
28 de outubro, 2024 | 14:41Das páginas do livro do Steven Pinker( O NOVO ILUMINISMO):
Os pensadores do Iluminismo, provocados por contestações da ciência e da exploração à sabedoria convencional, informados sobre o banho de sangue das guerras religiosas recentes e apoiados na facilidade de movimentação de ideias e pessoas, buscaram uma nova compreensão da condição humana. Foi uma era exuberante em ideias, algumas contraditórias, mas todas ligadas por quatro temas: razão, ciência, humanismo e progresso.
O tema primordial é a razão. A razão é inegociável. Se você começar a discutir por que devemos viver (ou qualquer outra questão), se exigir que suas respostas, independentemente de quais forem elas, sejam sensatas ou justificadas ou verdadeiras e, portanto, que outras pessoas tenham de acreditar nelas também, estará comprometido com a razão e com a avaliação das suas crenças segundo critérios objetivos.Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa de textos sagrados.
Foi a razão que levou a maioria dos pensadores iluministas a repudiar a crença em um Deus antropomórfico e atento aos assuntos humanos.A aplicação da razão revelou que os relatos de milagres eram duvidosos, que os autores de livros sagrados tinham lá as suas falhas demasiado humanas, que os eventos naturais aconteciam sem levar em conta o bem-estar das pessoas e que diferentes culturas acreditavam em deidades mutuamente incompatíveis, nenhuma das quais com probabilidade menor de ser obra da imaginação. (Como escreveu Montesquieu, ?se os triângulos tivessem um deus, atribuiriam a ele três lados?.)”
Gildázio Garcia Vitor
27 de outubro, 2024 | 19:09Quanta honra Camarada Toninho, fico muito lisonjeado com a sua disposição em ler os nossos comentários. Vossa excelência e o Diário do Aço estão sempre de parabéns por nos brindarem com artigos desse nível. Que a parceria de vocês seja duradoura. Muito obrigado!”
Rj
27 de outubro, 2024 | 18:59Ô Veiwer, obrigado pelo elogio! Laia? Sensacional! Adoro!
"Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios."
Perdão pelo esquecimento!”
Patriota Verdadeiro
27 de outubro, 2024 | 18:57Estes indivíduos chamados Viewer e Tião Aranha, que parecem até serem as mesmas pessoas, são o suco da extrema direita que grassa neste Vale do Aço. O DA impõe tanta regra para comentar aqui, mas aprova livremente comentário desse tipo de elemento. Negacionistas, bolsonaristas, misóginos, enfim... a lista que crimes que ostentam aqui é grande, só não vê, quem não quer.”
Rj
27 de outubro, 2024 | 18:49Ô Veiwer, claro que não entendi nada! Eu, semelhante a você, sou um analfabeto funcional, apesar de dois cursos superiores e mais 5,5 anos matriculado só aprontanto dentro da UCMG/PUC, atual Unileste. Mas não sou analfabeto político, portanto, 2 x 1 para você.
Ô Tião Aranha, apesar de comunista e, consequentemente, ateu, já li muitos bons livros desta dupla, especialmente aqueles cuja temática é a politica. Os melhores do Beto, para mim, são Cartas da Prisão e Batismo de Sangue, e do Boff, indiscutivelmente, é Igreja: Carisma e Poder, os quais tenho em minha humilde Biblioteca.”
Antonio Nahas
27 de outubro, 2024 | 18:43Boa noite. Agradeço a todos pelas sugestões, elogios e críticas. Quis apenas trazer as ideias deste jornalista para conhecimento e debate para nos ajudar a entender o mundo em que vivemos. Agradeço ao Diário do Aço a publicação. Ps.: vou comprar e ler os livros sugeridos.”
Tião Aranha
27 de outubro, 2024 | 17:33Bom texto, só esqueceu de falar que a esquerda radical teve apoio duma ala comunista da Igreja Católica. O Rj precisa ler os livros, mais de 60, do frei Beto e Leonardo Boff. Estando no poder são inoperantes. O Petrolao envolvendo a Petrobrás, Mensalão e Lava-jato será que já virou página virada! Rs.”
Maria das Graças
27 de outubro, 2024 | 16:24O dia que o brasileiro descobrir que o problema do desenvolvimento passa por políticas públicas, e não por um
amontoado de igrejas ai sim, nossos problemas acabarão.”
Viewer
27 de outubro, 2024 | 16:11RJ não espero nada de diferente de gente da sua laia.
Agora será que você entendeu realmente o que foi escrito?”
Paulo
27 de outubro, 2024 | 15:45O Rio de Janeiro, o crescimento das milícias é o retrato disso tudo.”
Rodrigo
27 de outubro, 2024 | 15:15Que texto primoroso!A base de uma sociedade democrática é composta pela CIÊNCIA, pela CULTURA, pelo JUDICIÁRIO e principalmente pela IMPRENSA("livre").Parabéns ao jornal Diário do Aço pela pluralidade de opiniões.Em tempo, a Idade Média acabou na RV!”
Rj
27 de outubro, 2024 | 14:19Ô Veiwer, você conseguiu ler o artigo todo?! Num quirdito! Parabéns!
Você sabe o significado de analfabeto funcional? Kkkkkkkkkk!
Leia o livro do Bruno Paes, são apenas 304 páginas. Aproveita e leia algo sobre o terraplanismo.”
Tião Marreta
27 de outubro, 2024 | 14:19As igrejas não declaram nada ao governo e isso é um prato cheio para as organizações criminosas lavarem seu dinheiro.
Por isso hoje a fé se associou ao fuzil, no caso ao contrário o fuzil viu na fé o princípio da oportunidade.
Se taxarem a fé, o fuzil migra para outro lugar.”
Boachá
27 de outubro, 2024 | 14:16Leiam o livro Verdade Sufocada.
Na verdade a igreja não coaduna com essa conduta, mas as mães desses indivíduos que vivem a margem da lei são na maioria evangélica e buscam na igreja a libertação dos seus filhos das garras do crime. Uma vez que o filho quer a proteção da mãe, protegem o reduto religioso dela e cobram caro o vacilo de quem fazem baderna com a igreja.”
Jane
27 de outubro, 2024 | 13:26Viewer não entendeu e não deve saber o que acontece no Rio de Janeiro, onde bandidos proíbem padres de fazer procissões porque para eles é idolatria. Sim existem bandidos que abraçaram a fé evangélica sem contudo saírem do crime. E não é culpa das igrejas e sim reflexo do "cadinho cultural" que se formou nas favelas. Sim assim como Talibã mata em nome de Alá temos no Brasil uma turma que mata em nome de Deus. Complexo de Israel existe. Vá no Rio e veja com seus próprios olhos. Não se está atacando a fé. Mostra-se as distorções e os vários usos da fé inclusive na política.”
Viewer
27 de outubro, 2024 | 11:08Escrever um artigo desse tamanho pra simplesmente associar as igrejas ao crime organizado é um absurdo, típica associação pra justificar a perseguição aos cristãos.
E pior associar com a facção criminosa que é verdadeiramente associada aos canhotos políticos.
Lastimável que esse tipo de texto tenha espaço nesse jornal.”
Gildázio Garcia Vitor
27 de outubro, 2024 | 10:00Excelente artigo! Parabéns! Hoje, vossa excelência está D+! Obrigado pelo artigo e pela dica do Livro!
Tem um outro, do final da década de 1980, muito bom: "Os Demônios Descem do Norte", de Delcio Monteiro de Lima.”