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08 de agosto, de 2024 | 07:00

Aula interrompida

Ana Rosa Vidigal *

Sabemos que ritos e riscos fazem parte da comunicação do dia a dia. O risco de ser compreendido de forma diferente da intenção inicial é algo que acontece com muita frequência. Mal-entendidos fazem parte. No contexto profissional, os riscos assumem uma proporção ainda maior. Para além da má interpretação, um dos riscos mais temidos para quem tem a profissão de professora é, com certeza, a interrupção de uma aula.

Imagine: você está ali, de frente a um grupo, esmiuçando-se na dedicação a uma performance já muito arriscada, que é a de levar pessoas aos meandros de uma reflexão, por meio do desenrolar de um ofício dissertativo-argumentativo, processual e complexo que é a exposição de ideias, e das conexões entre elas, próprias da docência. De repente, batem à porta.

Interrupção. O raciocínio é obstruído; as conexões se desfazem em segundos; um certo silêncio, movido pela atenção, a todo custo mantida até aquele ponto, se perde para sempre. Fato.

Como professora na universidade, as interrupções eram mínimas. Questão mesmo das circunstâncias. Na Educação Básica, interromper aulas mais parece um rito: à expectativa do som estridente de uma sirene, marcando horários e turnos, se equivale a atenção forçada à porta da sala. É quase um pressuposto do dia letivo de que alguém virá em algum momento, dizer alguma coisa, a outro alguém, seja ao professor ou mesmo aos alunos. E, sem cerimônia alguma, interrompe-se.

Da mesma forma que quem não dirige automóvel não entende certas regras imprescindíveis da convivência no trânsito, quem nunca deu aula não entende o desconforto que é a interrupção de uma delas.

Pior: há quem desfrute do momento de interromper. Isso mesmo. A pessoa vem trazer um recado, chamar alguém, dar um aviso, perguntar algo, se certificar de alguma coisa, tirar uma dúvida, se equivocar de sala, ou mesmo dizer que ‘o que tinha para dizer vai ser dito em outra ocasião, outra hora, em outro momento’. E interrompe. Todos se voltam para a porta: o professor, com olhar e respiração ‘suspensos’; a atenção do grupo reconfigurada ao ‘nunca mais’ depois daquele ponto.

O instante de concentração, muitas vezes cuidadosamente lapidado por longos minutos, é pulverizado em questão de segundos. Já reconheci uma satisfação no olhar de quem aponta na soleira da porta e faz de sua presença uma ‘aparição em cena’. Importância ‘sequestrada’ versus impotência resignada. Eis que o ‘palco’ se fragmenta e múltiplas coparticipações são sugeridas ali. Rendição. Silêncio. Minutos depois, fecham-se as cortinas.
“A escola é o lugar mais propício para a prática permanente de uma humanidade mais humana”


Ontem, porém, foi diferente. Eu estava ouvindo o relato, por uma aluna, de uma experiência malfadada. Cumplicidade e cuidado pela exposição, na condição pública na turma, do drama que ela havia vivenciado. Nesse momento, um funcionário surgiu à porta. Ele precisava me fornecer uma informação sobre um procedimento institucional e tinha que ser naquela hora. Interrompi o discurso. Olhei para ele, olhei para a aluna e pedi licença a ela. Consentida a acolhida à demanda, fui à porta.

O funcionário parecia um cadinho perturbado. Talvez tenha sentido, naquele instante, o alcance da interrupção. Talvez, vendo o cuidado que tive com o corte na fala da aluna, no gesto de pedir a permissão para atendê-lo, ficou mais palpável essa atitude, uma demonstração de gentileza e de respeito. Pediu desculpas pela interrupção.

Um tempo depois, na mesma manhã, ele me encontra na sala dos professores. Pediu desculpas novamente. Olhou bem para mim, certificando-se de que eu compreendia seu desconforto e também sua necessidade. Deixei claro que sim.

Fiquei surpresa e satisfeita. Nunca, que eu me lembre, havia ouvido um tão sincero pedido de desculpas por uma interrupção. E pensei: um colégio, como um todo, pode ser, efetivamente, a ‘incubadora’ de toda uma transformação social.

Pode parecer óbvio essa afirmação, afinal, é a função social da escola. Ainda assim me asseguro da importância de dizer e repetir: a escola é o lugar mais propício para a prática permanente de uma humanidade mais humana, alimentando isso no mundo e se fortalecendo nas mudanças. E quem não gostaria de estar nessa escola agora?

* Professora, psicopedagoga, consultora pedagógica e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, famílias, líderes e equipes, ministrando oficinas, cursos e palestras nos domínios da Educação contemporânea, da Comunicação como encontro, Da Comunicação Não Violenta e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo.

Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram: @saberescirculares, email: [email protected]

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Comentários

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Tião Aranha

10 de agosto, 2024 | 18:18

“Que bom a gente conhecer uma pessoa sem nunca ter convivido com ela. Seus textos sempre pautam pela procura harmônica do diálogo, pois tu sabes bem que ele é a condição necessária do bom relacionamento. Qualquer progresso humano requer o delineamento dos mecanismos negativos; pois, sempre falta a comunicação entre as pessoas. Ninguém possue fórmulas exatas ou teorias exclusivas para o verdadeiro desígnio da Humanidade. Obrigado pela minha aceitação no seu grupo de amizades. Esteja certa que não vou nunca te decepcionar. Rs”

Ana Rosa Vidigal

09 de agosto, 2024 | 20:43

“Ei, Tião, como vai?
Agradeço por estar presente, possibilitar a interlocução e a circulação de saberes. Você é sempre muito bem-vindo! A Aura do texto fica mais vívida quando o gesto dialógico se sobrepõe. Meu abraço.”

Tião Aranha

08 de agosto, 2024 | 15:03

“Essa atitude de agir pela razão que diferencia o ser humano de todos os outros seres vivos. Parto sempre do princípio que toda arte vem de Deus-, pra só depois vir o artista. Podemos ajudar os outros sem pedir nada em troca. Esse é o grande risco. O que mais incomoda o educador é quando ele quer passar um ensinamento e o receptor (o aluno) está com o pensamento psicológico voltado noutra aura. Aí é complicado! Mas de qualquer maneira, mesmo num vaso quebrado, dá pra perceber a habilidade de quem o esculpio; nem precisa se preocupar muito em "fazer um bom trabalho": isso é mania de perfeccionistas! Rs.”

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