20 de julho, de 2024 | 10:00

Igualdade de gênero: por que precisamos de cidades cuidadoras?

Kelly Komatsu Agopyan *

Atendência de envelhecimento da população mundial e a realidade das mudanças climáticas e seus efeitos ainda mais profundos na vida das mulheres têm dado visibilidade à uma questão que não é nova: a desigualdade de gênero no acesso e na provisão de cuidados.

A realização de atividades de cuidados – aqui considerando o cuidado tanto com outras pessoas, como a realização de atividades domésticas essenciais – está no cerne da manutenção e reprodução da vida cotidiana. Ainda assim, a provisão de cuidado é um assunto relegado apenas ao âmbito privado, sendo de responsabilidade praticamente compulsória e exclusiva de meninas e mulheres, reflexo da divisão sexual do trabalho que sustenta as sociedades patriarcais capitalistas. No entanto, é necessário lembrar que todas as pessoas, sem exceção, ainda que em graus diferentes ao longo de suas vidas, demandarão diferentes tipos de cuidados, e que esses deveriam então ser tratados como uma corresponsabilidade pública, coletiva e social.

A feminização do cuidado é uma realidade não só no Brasil como internacionalmente. Segundo dados compilados de pesquisas nacionais sobre uso do tempo, sistematizadas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 16 países analisados da região, o tempo despendido para realização de trabalho não remunerado por mulheres é sempre maior do que o de homens, podendo, inclusive, ultrapassar o dobro de horas – esses são os casos de Chile, Colômbia, Equador e Peru, apenas para citar alguns exemplos. O México é o país latino-americano em que as mulheres despendem maior número de horas realizando trabalho não remunerado de cuidado: uma média de 42,8 horas semanais. Já no Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) de 2022, divulgados pelo IBGE, revelam que mulheres ocupadas (inseridas no mercado de trabalho) dedicam uma média de 17,8 horas semanais para realização de afazeres domésticos e de cuidados, em comparação a 11 horas dos homens.

O cálculo final é simples: quanto mais tempo se despende realizando atividades de cuidados, menos tempo sobra para o (tão necessário) descanso e para atividades que contribuem com o próprio desenvolvimento pessoal e profissional. Assim, a estrutura da desigualdade de gênero se sustenta e se reproduz, em um ciclo difícil de ser quebrado ao longo das gerações.

Mas o que essa discussão tem a ver com a vida nas cidades? Tudo. As políticas urbanas não são neutras em relação às construções de gênero, e, na verdade, fazem parte desse sistema, reproduzindo e aprofundando essas desigualdades.

A organização territorial das cidades, sobretudo na América Latina, invisibiliza e dificulta a realização das necessidades cotidianas do cuidado.
"Todas as pessoas, sem exceção, ainda que em graus diferentes ao longo de suas vidas, demandarão diferentes tipos de cuidados"


Isso fica evidente, por exemplo, quando o planejamento urbano privilegia deslocamentos pendulares casa-trabalho (por meio de grandes corredores e eixos de transporte público e/ou individual motorizados), não dando condições de mobilidade adequadas para realização de deslocamentos fragmentados no miolo dos bairros, que são, muitas vezes, conectados a tarefas domésticas e de cuidado (ida à creche, à escola, ao mercado etc.).

Além disso, a ausência de uma infraestrutura de serviços capilarizada pelos bairros, que atenda as diferentes demandas de cuidado de forma integrada também impacta diretamente a qualidade de vida das pessoas que cuidam – majoritariamente mulheres – e das que necessitam de cuidados – como crianças, idosos, pessoas com deficiência, entre outras.

A brecha gerada pela ausência de serviços públicos de cuidado gratuitos e acessíveis onera então as famílias. Nesse sentido, a oferta privada dos serviços de cuidado acaba sendo a alternativa disponível apenas para as famílias que conseguem pagar, demonstrando também que o direito ao cuidado tem uma dimensão explícita de classe. Ao mesmo tempo, o trabalho de cuidado (mal) remunerado, continua sendo realizado também por mulheres, e no Brasil, sobretudo, por mulheres negras: segundo Nota Informativa da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família (SNCF), com dados do IBGE (2019), 45% dos postos de trabalho remunerado de cuidados eram ocupados por mulheres negras (em comparação a 31% de mulheres brancas). Uma pergunta então deve ser feita a partir desses dados: quem cuida das mulheres negras e de suas famílias?

Quando o cuidado não pode ser pago, muitas famílias acabam recorrendo às redes de apoio conformadas no interior das próprias comunidades a partir da necessidade coletiva compartilhada, e que são, muitas vezes, também protagonizadas por mulheres. Aqui fica então evidente a necessária análise interseccional entre território, raça, gênero e classe para formular políticas públicas mais coerentes com as realidades e necessidades locais, sobretudo, dos grupos em situação de vulnerabilidade.

Assim, precisamos falar da centralidade do cuidado na organização das cidades, não apenas porque esse deve ser um direito garantido à todas as pessoas, mas porque diz respeito a atividades essenciais que sustentam a vida urbana e o próprio desenvolvimento das cidades. Enquanto o cuidado for uma atividade compulsória e exclusiva das mulheres (negras), e enquanto o acesso ao cuidado for privilégio apenas de quem pode pagar, nunca alcançaremos cidades justas e democráticas e a plena garantia do direito à cidade a todas as pessoas. Colocar o cuidado no centro da agenda pública local é urgente.

Mais do que só um aparente slogan político, precisamos de cidades cuidadoras, tanto para começar a reparar as profundas desigualdades históricas de gênero, como para melhor nos prepararmos para os diversos desafios demográficos e ambientais que já estão postos para as próximas décadas.

* Pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP. Artigo publicado no Jornal da USP`.

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