04 de julho, de 2024 | 07:00

Sobre carregar água na peneira

Ana Rosa Vidigal *

Escrever é como 'carregar água na peneira', descobriu o menino do poema de Manoel de Barros. Impossível? Não é. Mas a questão aqui é outra; e, para respondê-la, utilizo três palavras do mesmo poema, as quais acredito que definem bem essa percepção do que é escrever: prodígios, peraltagens e despropósitos.

No poema, o menino, que carregava água na peneira porque escrevia, usava palavras para encher vazios. Aliás, era muito mais apegado aos vazios, que ele considerava 'infinitos'. E, assim, ao aprender sobre palavras e vazios, em suas peraltagens, o menino fazia prodígios com a arte dos despropósitos: escrevia.

Esse belíssimo poema de Manoel de Barros, em meio a tantos outros, de grande sensibilidade e poesia, me inspira a escrever hoje sobre a escrita. Há muito já pensava em fazer isso, apoiada por minha fiel interlocutora desta coluna, a psicóloga Daisy Correa, e, na ocasião que veio por esses dias: recebi um comentário em uma repostagem que fiz sobre a arte de escrever e seus efeitos nas pessoas que dizia assim: “a palavra traz cura, nomear traz entendimento”.

O comentário é da dra. Mayumi Kanashiro, uma amiga querida de longa data, que acredita na sensibilidade, nas pessoas e na cura. E escolheu juntar tudo isso como seu ofício: ela é pediatra. Interessante observar que muitos médicos gostam de escrever, e o fazem muito bem: Moacyr Scliar, da Academia Brasileira de Letras, por exemplo, já falecido, era médico e um grande escritor do cotidiano, cuja obra é bastante representativa e também admirada por mim.

A escrita e o ato de escrever, na perspectiva que proponho aqui, é aquela que traduz impressões. Cheguei mesmo a criar um nome para isso: ‘escrita impressiva’: trata de sentimentos, de percepções da vida de todo dia, de memórias, de interfaces entre narrativas de uns e de outros, dos ‘retratos’ de paisagens habitadas por humanidades. E que pode ser materializada em diferentes tipos de textos verbais: crônicas – como Scliar fazia muito bem – romances, ensaios, e tantos outros, inclusive mensagens cuidadosas de whatsapp e até mesmo a bíblia.
“Para escrever, é preciso sensibilidade para enxergar linhas nas entrelinhas das histórias, a própria e a dos outros”


E quando me refiro à coleção de textos sagrados, que compõem a Bíblia de Aparecida, especificamente, estou dizendo do valoroso trabalho de tradução dos originais, feita por meu tio, Padre José Vidigal, que o assina. Quem já se atreveu na arte de transpor uma escrita para outra, sabe o quão desafiador é essa tarefa de traduzir ideias, inclusive na co-criação que ela naturalmente exige. E da grande responsabilidade e inevitável comprometimento também.

Há muita poesia e maestria na escrita cujo foco principal é a conexão por meio do coração. Relatos jornalísticos também podem ter essa condução ‘impressiva’. Deborah Lima, que fez o comovente registro da ação de bombeiros em Brumadinho, em Minas Gerais, por ocasião da tragédia humana, ambiental e social de proporção planetária, que nos acometeu, recentemente, com o rompimento de uma barragem de mineração. “Escrever a dor do outro” é o título do episódio que fizemos juntas, ao inaugurar o podcast 👉Conversa Paralela Comigo, disponível na rede, para quem quiser conhecer.

Ao escrever, delimitamos em traços particulares a cada estilo, a representatividade dos fenômenos humanos, como primeiro passo para uma transcendência dessa condição, que nasce conosco e pela qual ansiamos vida afora. Escrever funde existências, cria amálgamas entre ancestralidades – passado, presente e futuro; memórias, identidades e projetos de criação conjunta, de narrativas que se encontram em uma interface sem fim. É por meio da “palavra-ponte”, descrita por MBakhtin, que cruzamos o portal.

A escrita, como descobriu o menino, sob o olhar de ternura da mãe, naquele poema do início desta conversa, é fazer habitar a arte no olhar de cada um que tem a disposição de seguir junto. Assim como ela, e tantos outros, quando falou: “Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!”. Ela estava certa.

Para escrever, é preciso sensibilidade para enxergar linhas nas entrelinhas das histórias – a própria e a dos outros – e coragem, para se doar a ‘re-desenhá-las’ por sua autoria. E nesse despropósito, de se oferecer para compartilhar com o mundo a água carregada na peneira, que tal, você também, experimentar dessa peraltagem?

* Professora, consultora pedagógica, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de educadores, professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e People Skills, suas interfaces nas relações humanas, na construção do vínculo e na potencialização das atividades profissionais. Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram:@saberescirculares, email: [email protected].

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Comentários

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Ana Rosa Vidigal

07 de julho, 2024 | 07:37

“Nelson Tucci, muito feliz com seu comentário. Uma descoberta fascinante para buscar alcançar a comunicação, na perspectiva do encontro, para mim, é que prática da escrita envolve necessariamente, o lado e o avesso, a frente e o verso, o que se vê e o que não se vê; o que se representa, nas linhas, e o que não é representado, as entrelinhas. E para a leitura, o caminho é o mesmo. Agradeço por reconhecer esse entrelaçamento.”

Ana Rosa Vidigal

05 de julho, 2024 | 07:39

“Dra Mayumi Kanashiro e Wilson Albino Pereira, muito queridos, gratidão, gratidão! A alegria da partilha de vida é toda minha. Continuem a circular saberes de sensibilidade, como já fazem muito bem. Meu abraço apertado e até breve, eu espero.”

Gildázio Garcia Vitor

05 de julho, 2024 | 06:38

“Professora Doutora Ana Rosa, muito obrigado pela atenção!
Para mim, um medíocre Professor de Geografia e História, recebo comovum elogio e, plagiando o "Nosso" Grande Poeta, agradeço-lhe:

"Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios."”

Nelson Tucci

05 de julho, 2024 | 06:05

“Linhas nas entrelinhas...
Grato por mais esta rica escrita. Vou compartilhar.”

Ana Rosa Vidigal

04 de julho, 2024 | 21:14

“Agradeço muitíssimo as palavras generosas de todos vocês, Tião Aranha, Luciana Silva e Gildázio Garcia Vitor. Os comentários que recebo nos artigos deste jornal são fonte inspiradora e motivacional, e me fazem sentir muito honrada. Dá uma alegria danada perceber a gentileza e a cortesia circulando também por aqui. Gratidão, gratidão!”

Wilson Albino Pereira

04 de julho, 2024 | 20:01

“Oi, prof.Ana Rosa.
Boas noites. Texto saboroso. Excelente! A sensibilidade sempre se faz presente na gente para ver, ouvir, perceber e traduzir o outro.

Abraço forte.”

Mayumi Kanashiro

04 de julho, 2024 | 19:21

“Ana Rosa, é uma honra ser citada por você, e neste texto tão precioso sobre escrita! Mais que isso, é uma alegria imensa estar com você, onde aprendo sobre afeto, comunicação e ideias ?”

Gildázio Garcia Vitor

04 de julho, 2024 | 12:24

“Escrever sobre o Manoel de Barros, o Guimarães Rosa da Poesia, de forma tão poética, deve ser um dom.
Parabéns! Excelente artigo! Obrigado!

"As coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis."

Ontem, um livro em homenagem a Manoel de Barros, "Diário do Ócio", do Jornalista Bosco Martins, foi classificado para a final do Prêmio Jabuti.”

Luciana Silva

04 de julho, 2024 | 12:09

“Maravilhoso, amo sua sensibilidade e o quanto marcou minha formação como pedagoga. Obrigada por deixar os olhos sensíveis ver além, obrigada por se aventurar e se deixar levar pela arte da escrita. Você me mostrou os processo do desenvolvimento da escrita os passos e a mágica que ela faz na nossa mente. Cada encontro com você era gerado em mim muita expectativa do novo e eu era transformada pelo conhecimento que você passa, muitas lembranças boas. Bjs Luciana Silva ex aluna do Unibh”

Tião Aranha

04 de julho, 2024 | 08:45

“Bom texto, você cita trechos de crônicas do poeta matogrossense, Manoel de Barros, fazendeiro, escritor, poeta do assombro e do descobrimento, como diz a crítica literária, e é do século XX, bem pertinho de nós. É muito privilégio ser sobrinha dum padre, referência como hemerito professor do Seminário de Mariana. Seus textos são muito citados nos grupos de estudos acadêmicos de Teologia e Filosofia antiga, da História da igreja, e tb, de Filosofia da idade média. Trata-se de um cônego acadêmico, tendo como referência o Seminário de Mariana; membro da Academia mineira de letras. Mas é isso aí: ser político ou ser escritor, hoje, é 'ter coragem pra usar o dom da palavra'. 'É ter coragem para dar a cara pra bater'. Seus textos oportunos como escritora - veem na moldura duma linguagem limpa, leve e clara. (Continue assim). Rs.”

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