02 de julho, de 2024 | 13:00

Deserto sem respostas

André Naves *


Chega a ser engraçado se não fosse trágico. As minhas ideias que floresciam como lírios do campo ressecaram em um profundo e silencioso deserto: um deserto sem respostas. Acho que a vida é assim mesmo. Atravessamos a aridez inóspita em busca de respostas que, de tão evidentes, acabam se tornando invisíveis.

Otto Lara Resende contava uma história bem interessante de um senhor que morava há mais de 32 anos num mesmo apartamento. Lugar bonito, na frente do mar de Copacabana. Sempre fiquei imaginando a biblioteca desse homem. Será que tinha tapetes? O que ele gostava de ler? Fazia as cruzadinhas? Lia o obituário?

Vamos voltar para o enredo... Aquele senhor morava lá há mais de 32 anos. 32! Passava pelo porteiro todo santo dia. Cumprimentava-o. Até caçoava do futebol. Mas nunca parou para ver mesmo. Acho que nem o nome sabia. De tanto ver, ele não via. Que coisa, né?

Um dia, entrou no elevador. 32 anos, veja bem. Não estou falando de 32 horas... Tinha um cartaz pregado lá. Foto do porteiro bem grande. Morreu. Foi nesse instante que nosso protagonista descobriu seu nome, seu rosto. Descobriu que ele tinha família. Foi a primeira vez que aquele senhor enxergou o porteiro.
Na morte, enxergou. Puxa vida!

A história termina aí. Mas a gente entende quando vai desertificando tudo. De tanto ver, não vê. Sabe o caminho que a gente passa todo dia? Deserto. Sabe o que a gente só ouve? Um grande silêncio que ecoa a falta de respostas.
“Atravessamos a aridez inóspita em busca de respostas que, de tão evidentes, acabam se tornando invisíveis”


Hoje eu estou meio que escrevendo só umas ideias sem nexo. Talvez seja pela minha gripe. A gripe passa. Não é desculpa. Pra quem já voltou do coma, o que é um estadozinho gripal? Quem sabe seja o cansaço? Escrever é meu prazer e a fadiga passa lá longe, onde o vento assobia e faz curva.

Deve ser pela tensão do momento. De ver tanta gente hipnotizada, repetindo a ilusão desértica de um silêncio sem respostas nem ideias. Parece até uma zumbilândia. De tão óbvias, as respostas nunca são ditas. Pior, mentiras ganham a ribalta! Prefiro o silêncio ensurdecedor que a sedução de um canto das sereias que leva à ruína e à morte!

Mas no deserto em que se tornou minha mente, parece até que estou vendo alguma coisa brotar. Um pingo de esperança no meio daquela secura da morte. Aquela que nunca resseca, nunca morre, a última no deserto.
Esperança! Uma rosa vermelha!

(*) Defensor público federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política. Professor, ganhador do Prêmio Best Seller, pelo livro "Caminho - a Beleza é Enxergar", da Editora UICLAP (@andrenaves.def).

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Comentários

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Tião Aranha

02 de julho, 2024 | 14:07

“Bom texto, falou do tino intelectualista orgânico-futurista dum grande escritor, advogado e jornalista de São João del Rei, Otto André Lara Rezende-, parece que o cerne da questão social deste país está mesmo na falta de aplicabilidade das leis, além do fato do brasileiro gostar de levar todas as coisas sérias na base da brincadeira; como dizia Chico Anísio. Muitos, só damos valor depois que vão embora! Rs.”

Gildázio Garcia Vitor

02 de julho, 2024 | 14:04

“Muito bom! Parabéns!
Ao ler, me veio à lembrança, Fernando Pessoa e seu heterônimo Álvaro de Campos:

"Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
[ ... ]
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em véspera de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incomôdo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida."”

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