27 de junho, de 2024 | 07:00

Um terceiro lugar

Ana Rosa Vidigal *


Quando ouvi ‘a teoria do terceiro lugar’ pela primeira vez, acreditei imediatamente ser algo positivo. Não sei bem o porquê, ou talvez saiba, sim: a ideia de um terceiro lugar que caminha comigo desde que conheci o conto de Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”.

Nesse conto, Guimarães Rosa trata de relações familiares, da construção da individualidade de cada um por meio dessas relações e das possibilidades de gerar uma história de vida com sua própria autoria. Muito além disso, a tessitura dessa narrativa se faz sobre a ideia do encontro por si só: o ‘terceiro lugar’, no texto, se constitui do verdadeiro movimento de ‘ocupação’ de si mesmo. E com a possibilidade de extensão dessa territorialidade aos outros, em seus movimentos particulares de transformação e transcendência como seres humanos.

Voltando, então, à teoria, o ‘terceiro lugar’, neste caso, está sob a perspectiva da importância do encontro na vida das pessoas. Proposta pelo sociólogo Ray Oldenburg e publicada no livro “The Great Good Place” (1989), a teoria defende que o aspecto social, para além do ‘primeiro lugar’ - a casa - e do ‘segundo lugar’ - o trabalho - está intrinsecamente relacionado à qualidade de vida: temos a necessidade, como seres humanos, de um terceiro ambiente para cultivar nossas relações com outras pessoas, sobretudo, criar novas conexões em nosso círculo de convivência.

Pensando nisso, fiz uma experiência no último fim de semana que contemplasse a ideia e a colocasse em prática com minha ‘assinatura’. Claro, planejei tudo com bastante antecedência, inspirada em palavras de força e generosidade de quem caminha comigo - aquele tal ‘empurrãozinho’ de que falamos no último artigo, publicado nesta coluna, que nos impulsiona os passos mais adiante no nosso percurso. Literalmente.
“Temos a necessidade, como seres humanos, de um terceiro ambiente para cultivar relações com outras pessoas”


Criei os Encontros Marcados - Itinerários comigo. Escolhi o domingo que traz a oportunidade de estar no ‘primeiro lugar’ (em casa), com a possibilidade de se escolher conhecer novas pessoas, novos territórios e colher vivências enriquecedoras que os ‘novos ares’ nos proporcionam, exatamente por ‘arejar’ a vida de todo dia.

No ano passado, os Encontros Marcados eram on-line, e, na ocasião, um grupo bacana discutia, por meio de obras que escolhi para esta finalidade, sobre a construção do vínculo nas relações humanas. Desta vez, vivemos na prática, presencialmente, tudo isto: um novo lugar, uma memória cultural, nossa identidade mineira, uma gastronomia típica, um acontecimento histórico, um convívio motivado entre pessoas que não se conheciam ou que não se viam há algum tempo.

Feito o convite, aceito, e completo o carro, partimos para o ‘terceiro lugar’, começando por um encontro no ponto de partida com café e biscoito de queijo em boas companhias. Enfim, você já pode imaginar como foi essa primeira experiência que pretendo repetir muitas vezes. Traços de mineiridade em tudo, sobretudo na paisagem: nosso destino, um braço da Serra do Espinhaço.

De volta, o tempo esticado da chegada e o gosto da risada compartilhada, do olhar para o outro e suas particularidades, das trocas em palavras ou no silêncio que cura. Levamos a criança que nos habita para passear e é fácil imaginar também como voltamos desse ‘terceiro lugar’.

A gente vai para se encontrar: a si mesmo e aos outros, e, assim, revigorar o laço com a existência.
E é por isso mesmo que a noção do terceiro lugar, como ‘território’ de encontro, remeta tão imediatamente à territorialidade da “Terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa: esse lugar de encontro consigo mesmo, de amplitude e extensão de si, de sua essência e sua magnitude. E que convida os outros a participar.
“É interessante como a literatura acompanha a trajetória da gente muito mais próximo do que se imagina”


Disto é feito o ‘terceiro lugar’: um lugar de encontro, que ninguém fica à ‘margem’ e evidencia, efetivamente, a movência, como nas águas do rio que correm e que nunca serão as mesmas em cada instante que passa.
Pessoas são movimento, dinamismo e transformação. As interações que criamos uns com os outros também. E, é por meio dessas conexões diversificadas, que estabelecemos com os outros, que nos definimos e nos construímos em nossa singularidade. E deixamos nossa ‘assinatura’ na vida.

Se você nunca leu “A terceira margem do rio”, está na hora exata de fazer isso. Se já leu, aproveite a menção para reler. É interessante como a literatura – a arte nas palavras – acompanha a trajetória da gente muito mais próximo do que se imagina. Mas, sobre isso, a arte na vida de todo dia, fica para uma próxima conversa.

* Professora, psicopedagoga, consultora pedagógica e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de educadores, professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e People Skills, suas interfaces nas relações humanas, na construção do vínculo e na potencialização das atividades profissionais. Publica às quintas-feiras, na editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram: @saberescirculares | email: [email protected]

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Comentários

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Nelson Tucci

30 de junho, 2024 | 07:10

“Os textos da Ana Rosa são um deleite. Sempre. Muito agradecido a vosmecê.”

Warley

29 de junho, 2024 | 17:43

“O terceiro lugar, não tinha parado para pensar nessa possibilidade até o convite para essa reflexão. Acho digno criar espaços de saúde mental, para o corpo e para a alma em meio ao caos da nossa rotina. Uma pausa para olharmos para dentro se faz urgente nesses dias modernos de tantas telas. Agradeço mais uma vez pelo compartilhar de palavras de sabedoria e de leveza. Ah, vou tirar da prateleira o Guimarães que a muito me aguarda para lê lo.”

Tião Aranha

27 de junho, 2024 | 09:15

“Bom texto, pensei que fosse a terceira via, como alternativa para a solução política criada entre a esquerda e a direita. Texto bem elaborado, que se aproxima de Guimarães Rosa no entendimento do ritmo da vida atual. A linha da vida tem que estar bem esticada, isto é, bem amarrada nas estacas presas ao solo; não importando sequer a profundidade dessas colunas. Deus quando deu o dom da arte, ele só escolheu o coração do indivíduo-, sem saber que essa luz fosse brilhar num ambiente escuro ou num ambiente claro. Foi opção divina. Conclusão: não adianta ter talento se o autor não sabe usá-lo. O fato é que a vida é um sopro.E quando menos esperamos já tá na hora da partida; deixamos pra trás ainda muita coisa pra se aprender num mundo em que as pessoas estão cada vez mais distantes: de tudo e de todos. Rs.”

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