16 de maio, de 2024 | 07:00
O guizo e o gato
Ana Rosa Vidigal *
E tem aquele episódio do gato, que se-contar-ninguém-acredita. Estávamos voltando de carro de um sítio próximo a um município em Minas Gerais, um dos menores, segundo o IBGE. Muita natureza de roça mineira: árvores, morros, plantação, curral, riacho. Eis que escuto um piado, ou seria miado, vindo de algum lugar bem próximo. Um pássaro? Um gato?
À medida que o carro avançava, o som acompanhava. Estrada de terra, solavanco, poeira, mata-burro, porteira. E o piado-miado lá. De repente, chegando no asfalto da estradinha, parou. Pensei: voltou pro sítio”. Que nada. Com o carro ganhando velocidade, e a cantoria recomeçou. Meu Deus, o que pode ser isso? Será que tem um bicho preso neste veículo?”
E tinha. Estacionado o carro, o som retomou e eu fiquei até aliviada: o bicho estava lá vivo, não tinha morrido, onde quer que ele se encontrasse nas engrenagens do veículo. Falei: Gente, tem um gato preso aqui neste carro”. Seria possível? Com a ajuda da lanterna do celular, caçando o coitado, que continuava a miar (um gato, por razões óbvias agora), vejo dois olhinhos estatelados, dentro do vão gradeado da roda dianteira do carro.
E pulou gente para todo lado. Alguns tinham escutado os gemidos como eu, mas não ousaram dizer nada. Ousei. Já tinha ousado o gato também. E provei um pouco da insensatez, como a daquele bichano, que foi se alocar não-sei-como-não-sei-onde: gente, olha o gato, como a gente vai tirá-lo daqui?”.
A loucura virou coletiva porque estávamos lidando com algo sem precedentes para ninguém ali (pensando agora, deveria ter gravado um vídeo para o Youtube sobre como salvar filhotes na roda de um carro, a título de utilidade pública de interior mineiro). Como faríamos?
Era um misto de será que ele está inteiro”, vou buzinar para ele sair de lá”, e se ele estiver machucado, faltando pedaço”?
Passado o desespero inicial, em que a imaginação continuava fértil agora em outro contexto, o da vida do bicho, independentemente da sanidade de todos, inclusive a dele mesmo, contamos com a outra parte da inventividade para tirá-lo de lá.
O espaço era exíguo, ele estava preso, mas era tão, tão miudinho, que conseguia se esgueirar para o fundo onde a vista e a mão não alcançavam. Já não se alcançava de jeito nenhum para abrir a grade, quanto mais tirar o bicho de lá. Desparafusada a beirada, o motorista puxava de um lado a peça, e o gatinho se escondia mais ainda dentro da engrenagem do carro. Pensei: se peixe morre é pela boca, gato pode ser salvo por ela também”.
Se nos fartamos de ler legendas de posts, o que será de nossa capacidade de ler a vida efetivamente?”
Fui lá na cozinha e um belo almoço de frango com quiabo e angu nos esperava. Almoço típico, para a nossa alegria e a do gatinho também. Tirei um pedacinho de carne, sem querer estragar o prato que seria servido naquele instante, e voltei ao carro. Lá fui eu com o franguinho, chegando mais perto do bichano, que esboçou se aproximar, mas escondeu-se novamente. O clima era de alvoroço: uma dúvida de ansiedade entre almoçar primeiro ou tirar o gato de lá? Estávamos todos famintos, assustados e desconcertados com aquilo, inclusive, claro, o gato.
O motorista já estava com a grade mais afastada possível, e a segurava com força para mantê-la naquela posição. Gritava: Ana Rosa, pega o gato, pega o gato”. Escusado dizer que me contorci o máximo, enfiei o braço, pedi a Deus para ser certeira, e fui. Lá estava o bichano, magricela, pelo arrepiado, jeito atordoado, do tamanho da palma da minha mão, tentando bravamente escapar de meus dedos.
Levamos para a cozinha, e saí para buscar um pouco de leite na vizinha. Coloquei no pires debaixo do armário onde ele foi se alocar. Fomos almoçar.
A conversa seguiu aliviada, o bicho sem nem um arranhão sequer, e a gente de alma lavada. Vieram as piadas. Justamente eu que era da cidade grande, não sabia nada de roça, de interior, de bicho solto, e patati-patatá, fui eu que estiquei o corpo, o braço, a mão e o coração, e peguei o gato. Então, olha só, quem colocou o guizo no gato?”
A maioria não entendeu. Pois é, minha gente, tudo isso só para dizer que, em um momento em que celebramos o dia internacional da educação, do livro e dia nacional da literatura infantil, se não cuidarmos da nossa leitura literária, de tantas obras bem feitas, pelo planeta e por tantas épocas afora, estaremos reduzindo não somente nosso vocabulário, como nossa percepção de mundo ao universo paradoxalmente limitado das redes sociais.
Se nos fartamos de ler legendas de posts, o que será de nossa capacidade de ler a vida efetivamente, colecionarmos saberes de literaturas riquíssimas e nos encantarmos com a intertextualidade de todo o dia? Quer coisa mais instigante para os neurônios do que você identificar, nas entrelinhas, as pistas do sentido, indícios de referências compartilhadas entre interlocutores? Afinal, a comunicação é um jogo, e, como tal, estratégico e divertido.
Batizado como Valente, não é apenas o gato do causo. É também todo aquele que resiste aos apelos fáceis do digital e não cai facilmente nas redes literais e limitantes. E que, ao resistir, deixa seu grito de fé na infinita inspiração dos conhecimentos multiculturais, multitemporais, que se multiplicam, por sua vez, nas conexões imaginativas e inventivas, de que só a criatividade da mente humana é capaz, e que ainda sobrevivem, a duras penas nos tempos atuais (uai, pena de gato?). Por fim, um viva a Esopo, a La Fontaine e a Monteiro Lobato.
* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo. Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram:@saberescirculares email: [email protected]
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Tião Aranha
16 de maio, 2024 | 18:37Gesto de caridade da nobre, ilustre escritora. Fé, caridade e esperança fazendo parte da tríade católica. Certa vez perguntaram pro João Ubaldo Ribeiro qual a importante. Ele respondeu que é a Esperança, válida até pros animais, em se tratando de viver num mundo louco como o nosso. O gato tem percepção que nós "humanos" não temos. Ele não depende da evolução das associações de sindicatos, nem de partidos políticos, pra viver. Basta totalmente a atenção de um dono. Nem precisa da evolução da comunicação de massa, como nós, de geração de empregos - agora que a discussão da censura tomou conta do país, da mídia barata porque é comprada! Rs.”
Angela Maria Passos
16 de maio, 2024 | 15:50A autora demonstra , com muita propriedade, o descuido e desconhecimento com a boa literatura nos tempos atuais do celular e suas redes sociais. Resta saber se os nossos representantes, do atual governo, no setor educacional estão preocupados e valorizando a leitura de bons autores nas escolas. O CONAE 2024 ( Conferência Nacional de Educação) fala alguma coisa sobre a importância da literatura no ensino escolar???”