09 de maio, de 2024 | 07:00

Amor de mãe

Ana Rosa Vidigal *


Embora saiba da sacralidade do tema e do risco em emitir opinião a respeito, ao abordá-lo de uma forma talvez não tão convencional à data comemorativa, vamos lá: nada mais supervalorado do que o amor de mãe.

Apesar de ser apresentado, dito ou entendido como uma doação, o afeto materno ou o cuidado de mãe não é gratuito. Uma hora a conta chega, e, normalmente, junto a certas expressões como: “e eu que fiz tudo por vocês”. Vocês, no caso, os filhos. Mas é raro quando o pai dos filhos não vem incluído nesse pronome de tratamento no plural.

Não duvido desse “tudo”. E tenho até certeza que é tudo mesmo. Sei de ‘carteirinha’ (aliás, uma certificação de mãe no currículo poderia ser também uma boa ideia, não?): criei duas filhas em idade pré e adolescente até virarem jovens adultas sob o mesmo teto, só, há até poucos anos (incluindo aí os períodos da pandemia e pós-pandemia, que foi um grande desafio para todas nós, não é verdade?).

E a conta chega, porque até eu, que me sinto muito independente, já me vi, mais de uma vez, preciso confessar, expressando minha frustração com ‘choro e ranger de dentes’ sobre uma suposta ingratidão – que não se verifica, na verdade – por toda a dedicação que o amor de mãe é capaz.

E bota amor nisso. Não é à toa que o assunto se tornou, recentemente, tema de redação em exame nacional: "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil". Não aparece o termo ‘mãe’, mas acho pouco provável que não leve necessariamente também a ele, esse trabalho de cuidado da mulher.

A temática vem sendo discutida com frequência e surge, vez ou outra, relacionada à pouca valorização e reconhecimento da função. No entanto, penso serem coisas distintas a ‘conta’ de cada uma dessas atividades, sobretudo quando envolve afeto, vulnerabilidade e aleatoriedade.

Primeiro, não se pede para nascer. Isso é fato. Sem adentrar as questões religiosas – em que, em algumas delas figuram a intencionalidade do ser ao escolher pai e mãe, e a família em que vai aparecer, a título de responder a carmas e darmas – a verdade é que, conscientemente, não se escolhe, vem no ‘pacote’. Depois, o seguinte: nasceu, é de responsabilidade de quem fez. Tipo “toma, que o filho é seu”. Nesse raciocínio, a dedicação e o comprometimento são do nível da vulnerabilidade do ‘menor incapaz’. De lei. Prevista a parentalidade participativa e responsável.
“Ser mãe não é vocação, não é destino, não é instinto. É escolha”


Desse modo, a conta chega, mas equivocada. Não se cobra aquilo que é de direito. É ou não é? Quanto à sacralidade, data comemorativa e afins, que tal repensarmos tudo isso em uma perspectiva complementar que, a princípio, pode parecer um tanto ‘desalmada’, mas que vale a pena trazer, acredito, na dinâmica movente da vida evolutiva em sociedade, seja no núcleo familiar, seja no comércio (a melhor data do ano para vendas; tão boa quanto o natal, e muito mais lucrativa do que o dia dos pais).

Ser mãe não é vocação, não é destino, não é instinto. É escolha. Tirando casos de violência ou falta de informação, há uma larga margem de opção. E vemos, atualmente, muitas mulheres optando por não serem mães de fato. Ou muitos homens assumindo, na prática, “equanimidade na prestação de cuidados devidos aos filhos no exercício da parentalidade”, como está na lei. Há, nesse contexto, uma extensão da territorialidade de ‘mãe’, que, ainda assim, pode ser assunto de disputa sobre a construção do vínculo afetivo dos filhos: mães que não querem compartilhar, em absoluto, pasmem, a atenção dos filhos com outrem.

É preciso reconhecer que nos tempos atuais há muitas formas diferentes e recorrentes de famílias. Monoparentais, por exemplo, entre outras. Isso significa que aquela ideia de mãe ‘monoteísta’, nos moldes de antigas gerações que coexistem hoje, está, minimamente, defasado. Pais também têm, na lei, o respaldo a um salário-parentalidade, por exemplo, ou à licença no trabalho, e compartilha disso, dentre outras modalidades, de uma valoração equivalente.

Voilà. Feliz dia das mães, sim, inclusive para mim, mas sem cobranças. Sem sacralidades e sem privilégios. Com reconhecimento do trabalho do cuidado e com muita gratidão, pelo lugar de tanta importância na vida de cada um (que muito Freud explica), sim. Porém, amor de mãe tem etiqueta de entrega, e não de retorno. Por isso, a gratidão e reconhecimento são partilhados com todos os envolvidos, como o trabalho de cuidado que o pai oferece, que os filhos oferecem, assim como o dos parentes próximos e dos amigos. Claro, “mãe só tem uma”. Mas, para fechar a conta, somam-se a unicidade, a exclusividade e a importância de cada um que participa dessa ‘comunidade’ educativa. E multiplicada a possibilidade de se compreender o papel de cada um nesse amplo sistema, para que todo amor que flui nele seja ‘são’, incluindo, inclusive, o amor de mãe.

* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo. Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram:@saberescirculares, email: [email protected].

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