18 de abril, de 2024 | 11:00

Menino ou menina?

Ana Rosa Vidigal *


No auge do confinamento, durante a pandemia de covid 19, quando muitas formas de entretenimento e interação social surgiam e aconteciam via on line, participei da banca avaliadora de um ex-aluno de jornalismo em uma universidade paulista que analisava, em sua dissertação de mestrado, os tais “chás-revelação”. Para quem não sabe o que é isso, uma breve explicação: chás-revelação são espetáculos para o anúncio do sexo do bebê ainda por nascer. Naquela época, uma outra ‘pandemia’ surgia desses ‘reality shows’, em que famosos midiatizavam, de forma digital, tecnológica e mirabolante, se a gravidez resultaria em menino ou menina.

Nas proporções que o evento assumia naquelas circunstâncias, tornava-o realmente digno de um estudo fenomenológico na comunicação social. E, claro, não variavam as cores que representavam o sexo dos bebês: rosa, para meninas e ... (complete a sentença)... para meninos. Isso mesmo. E com certeza você e eu sabemos como a maioria completaria a lacuna pela cor esperada e é esse o ponto que traz a conversa de hoje.

“Menino ou menina?” Com certeza você também já ouviu essa pergunta, cuja resposta inevitavelmente aponta para direções opostas. Por exemplo, imagine essa pergunta sendo feita em uma loja de roupas infantis quando, solícita, a vendedora pergunta qual o sexo da criança para melhor direcionar você à seção de roupas. Nesse caso, à seção de roupas para meninos OU à seção de roupas para meninas.

Inúmeras são as ocasiões em que categorizamos o universo infantil para o que seja azul ou para o rosa em nossas representações sociais. Vamos a outros exemplos. Quando criança, minha primogênita escolheu uma festa de aniversário cujo personagem central era o Ursinho Puff. “Mas o ursinho Puff é para festas de meninos”, ouvi da atendente. No entanto, quando a questão é do cliente, que “tem sempre razão” (porque está bancando a festa), manteve-se a temática sem mais discussão. Desse episódio singelo, já se vão vinte e cinco anos.

Recentemente, em um café, uma amiga compartilhou uma situação, no mínimo curiosa, com sua caçula de nove anos: quando ela está uniformizada e vai a um ambiente público acompanhando a mãe em compras em um supermercado, por exemplo, costuma ouvir de outras mulheres: “mas ela mesma é quem escolheu fazer esse esporte?”. O tom é de estranhamento, e daí você já imagina como ela estaria vestida: chuteiras e meião de futebol. Por que não? Resultado: a criança se sente intimidada por esses comentários recorrentes, e quem não se sentiria?
“A escola é o lugar central onde múltiplos exemplos de exclusão acontecem permanentemente”


Fatos assim não são incomuns. Outra amiga, que tem uma menina há alguns poucos anos, me narrou algo bem ilustrativo dessa conversa de hoje. Um local, frequentado por elas, ofereceu um cronograma de atividades para as crianças escolherem, e dentre elas, uma aula de ballet e uma aula de judô. A filha escolheu judô. Era a única menina da turma e a de menor idade. Em três aulas, ela desistiu. Mudou para a aula de ballet.

A mãe conta que observa estes breves “recados da sociedade”: primeiramente, as aulas eram concomitantes, ou seja, o horário era o mesmo para os dois esportes. Se a criança optasse para frequentar ambas as aulas, não poderia. Na sequência, a filha entendeu, pela dinâmica que foi dada às aulas de judô, que seu ‘lugar’ não era ali. Seja pelos comentários das mães, ou dos filhos, seus colegas na turma, seja pela forma que foi conduzida a atividade, sem muita preocupação em incluir os interessados, sejam eles (e elas) quais forem.

Ora, minha amiga é engenheira, trabalha e tem um time sob sua liderança de mais de trinta engenheiros, na maioria homens. “Se eu tivesse dado ouvidos, quando criança, a coisas assim, eu não teria a profissão que tenho hoje”, ressalta, com razão. Então, me digam, leitora, leitor, onde está o foco do problema em separar o que é da categoria ‘do azul’ e o que é da outra categoria, a ‘do rosa’?

Se você observar com atenção seu entorno, as ações e as falas, verbalizadas ou não pelas instituições, grupos e, sobretudo, famílias menos dialógicas, verão que há uma articulação em três dimensões que perpetua um panorama nada moderno, equivocado, e, por vezes, cruel, sobre essa temática.

Vejamos. Nos exemplos, há a instituição que oferece as atividades. Aqui pode ser a escola formal, um clube ou uma escola de esportes, que proporciona o encontro das crianças para uma finalidade coletiva. Há o grupo dos pais ou responsáveis pelas crianças, e há o grupo das crianças, que são nosso foco central nesta reflexão.

Considerando essas três dimensões, fica claro que os sujeitos podem agir de forma a minimizar os comportamentos que favorecem a exclusão e o não pertencimento: professores e instrutores podem evitar que as crianças escolham brincadeiras que menosprezam, tiram o 'crédito' e a confiança do/a colega, caso elas queiram pertencer ao grupo de atividades que não está previamente categorizado como seu. Isso é simples de se fazer, se há consciência, cuidado e atenção por parte de uma gestão que forma e acompanha esses profissionais.
“Inúmeras são as ocasiões em que categorizamos o universo infantil para o que seja azul ou para o rosa nas representações sociais”


Famílias devem se atentar no mesmo sentido: comportamentos que suas crianças podem replicar com intenção de segregar, e, contudo, podem interferir ou pontuar quando isso acontece. Finalmente, a escola formal, onde, afirmo com ganho de causa, que isso frequentemente acontece. A escola é o lugar central onde múltiplos exemplos de exclusão acontecem permanentemente: há mais bullying entre 'o teto e o chão' de uma sala de aula do que podem imaginar gestores e famílias inteiras, que apostam na educação como caminho de transformação e acolhimento a todas as crianças do mesmo modo.

Não é à toa que acontecem, a todo momento, diferentes iniciativas particulares e públicas de ações assertivas para o feminino: órgãos internacionais em todo o planeta criam prêmios e promovem reconhecimento de várias maneiras para quem se ocupa e investe na educação de meninas. A restrição a esse horizonte ainda é visível, não só em nosso cotidiano social, como também em nações e povos. Se vemos hoje uma mulher no volante de um ônibus nas ruas da cidade, ainda nos assustamos.

Menino e menina. Não se trata somente de uma escolha de preposição – o ‘e’ ou o ‘ou’, mas de uma pré-posição de atenção a um movimento social já caduco, porque antigo, e, mesmo assim, urgente, porque imprescindível para a progressão da equidade entre meninas e meninos em nossa contemporaneidade.

* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo. Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram:@saberescirculares email: [email protected]

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Comentários

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?urea Tomasi

25 de abril, 2024 | 16:10

“Triste e revoltante, ao mesmo tempo, como a discriminação apoiada no preconceito ainda está presente em nossa sociedade, principalmente nos meios educacionais que deveriam questionar e desconstruir essas práticas. Muito necessária e oportuna sua colocação Ana Rosa!”

Daisy Cristiane

19 de abril, 2024 | 10:22

“'Azul ou rosa, carrinho ou boneca, futebol ou ballet... ' categorizacão desrespeitosa, limitante.
Façamos a nossa parte.”

Gildázio Garcia Vitor

18 de abril, 2024 | 11:56

“As meninas, de rosa, para a Colmeia, e os meninos, de azul, para a Papuda, já disse a Doidamares da goiabeira.”

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