11 de abril, de 2024 | 09:25

Onde nasce a criatividade?

Ana Rosa Vidigal *


Não há mistério em afirmar que a origem da criatividade está na bagagem cultural que uma pessoa vai acumulando ao longo do tempo. Pelo menos, é o que se acredita a respeito das sinapses que nosso cérebro produz: as conexões entre saberes vão produzindo novos, inovam, a partir dos que já haviam sido construídos. E as possibilidades de se pensar alternativas sobre algo vão se estendendo, se multiplicando, porque mais elementos vão surgindo e compondo uma trama inventiva, imaginativa e criativa dentro de nós.

Bagagem cultural, repositório, arcabouço. Tudo isso para dizer de um conjunto de expressões típicas de um grupo, de uma sociedade, que se materializam em ações de todo tipo, voltadas, principalmente, para o domínio artístico, em suas diferentes manifestações.

A criatividade estava por toda parte na minha infância: seja na profissão de minha mãe, professora e artista plástica de formação, seja nos hobbies de meu pai, que tinha um quartinho na casa onde morávamos, em que colocava em prática suas criações – nos entalhes em pedaços de madeira, no torno e outros materiais de que já nem me lembro mais.

Nós também, as filhas, tínhamos nosso cantinho de criação: lápis de cor, papel, tinta, giz de quadro. Mas o que mais apreciávamos era quando chegava uma lata de argila, envolta em um pano úmido para não secar no caminho, e que, vez ou outra, meu pai trazia do mercado. Ali construíamos ninhos de passarinho, com ovinhos dentro, e mesmo um passarinho na beira. Ou outras figuras que eram moldadas com afinco e cuidado: uma árvore, uma casinha, uma pessoa. Como havia também um ‘ritual técnico’ para a imaginação tomar forma: ao manusear a argila, molhávamos os dedinhos na água para aplainar os cortes que surgiam durante a modelagem, para que, ao final do processo, quando as peças secassem, se mantivessem inteiras, sem rachaduras.
“Qual o verdadeiro paradeiro da criatividade, em um mundo tão repleto de tecnologias digitais, de botões, de cliques, e de telas?”


Nossa fonte de inspiração era a natureza, nos passeios ao Caraça, em Catas Altas da Noruega (em Minas Gerais) e também, ainda que mais esporadicamente, um museu ou espaço cultural, sob a mediação pedagógica do olhar e da sensibilidade de minha mãe. Outro passeio que não podia faltar eram as sessões matutinas de Tom e Jerry aos domingos no cine Jaques (aqui só os da minha geração de Belo Horizonte saberão!). Ah! E tinha o momento de histórias inventadas pelo meu pai, que adorava nos colocar para imaginar viagens a diferentes cantos do mundo em um tapete voador (estilo “Se minha cama voasse”, filme inovador para a época dos anos 70; e, nesse ponto das lembranças, já estou indo longe demais). Tudo isso estímulo para a criação.

Voltando ao agora, e com essa inquietação que traz a pergunta ao abrir a conversa no texto de hoje, percebo que tudo isso junto e misturado, todas essas vivências infantis, nos proporcionaram, a nós três, irmãs, uma forma de ver ao redor de uma maneira mais criativa. E haja criatividade para lidarmos todos com os desafios da vida, pessoal, social e profissional, não é verdade?

Falar sobre criatividade não parece tão difícil nos dias atuais: buscar alternativas, composições, encaixes, possibilidades, caminhos e percursos ainda não transpostos, transcender ao que já é pelo o que já foi. Porém, não podemos dizer do mesmo modo sobre onde encontrá-la. Qual o verdadeiro paradeiro da criatividade, em um mundo tão repleto de tecnologias digitais, de botões, de cliques, de imediatismos, de telas e janelas que se abrem quase que simultaneamente ao menor movimento de nossa intenção, ainda brotando no pensamento?

Sabemos que a restrição ao desenvolvimento da criatividade humana está evidente – na escola, nos processos organizacionais, nos ambientes não-formais de construção do conhecimento e de formação de pessoas. A convivência diária por todas as faixas etárias com a ‘inteligência artificial’ tem mostrado isso, e não adianta achar que isso vai só “simplificar” a vida. Como educadores, também sabemos o quanto esse convívio já repercute e altera o equilíbrio em nossa saúde mental, emocional e física. Isso porque, acredito piamente, na falta de incentivo às práticas criativas, seja na lida de todo dia, seja em um desafio a ser resolvido no âmbito do trabalho, comprometemos visivelmente nosso centro de desenvolvimento humano.

Assim, nos tempos de agora, com poucas interações entre pessoas, vivências, trocas, paciência, tempos para ouvir como experiência ‘raiz’, que permitem uma bagagem bem recheada de conexões humanas, onde nasceria a criatividade? Se a criação é tão necessária à nossa constituição de projeção futura, de entendimento autoral e de ação colaborativa intuitiva, onde encontrá-la e como alimentá-la?

Ouso aqui uma possível resposta a essa pergunta, de um ponto de vista bem inusitado, talvez, para alguns; no entanto, plausível e pertinente para outros que já provaram da proposta: em uma atividade não remunerada.

Sim, podemos encontrar criatividade naquilo que chamamos de trabalho voluntário e nos movimentos que instauram essa modalidade social de agir sem grandes formatações. Vejamos. Desde criança – e volto no tempo de forma proposital– vi pessoas aqui e ali – poucas, é verdade, mas estavam lá – separando um tempo de sua comprometida semana profissional para se dedicar ao trabalho não remunerado. E encontravam satisfação nisso: talvez pela oportunidade de estar com outros, que tinham o mesmo propósito; talvez pela própria atividade vinculada ao trabalho escolhido, e que permitia expandir seus talentos e dons. Talvez por uma intencionalidade altruísta, ou mesmo por vontade de pertencer a um grupo de pessoas com outros perfis do que aqueles em que se encontrava todo dia.
“É no conforto dos bons encontros que tudo se encaixa e a criatividade, ao nos fazer autores de nós mesmos, pode livremente nascer e crescer”


Comecei com essa experiência a partir de uma tarefa de gincana na escola de minha filha. A proposta era gravar em áudio, no estúdio de uma instituição contemplada, a leitura de livros didáticos do ensino médio para estudantes com diferentes graus de cegueira. Fui, participei da experiência, gostei e permaneci nessa atividade por algum tempo. E isso tem muito tempo. Outras oportunidades apareceram.

Recentemente, participei de uma Residência de Aprendizagem Criativa pelo Instituto Anísio Teixeira, na Bahia, como impulsionadora de projetos pedagógicos vinculados a iniciativas nas salas de aula da Educação Básica daquele estado, com professores da rede pública. Uma valiosa vivência em atividade não remunerada que proporcionou muita “partilha de conhecimento”, entusiasmo, colaboratividade, e, sobretudo, co-criação.

A proposta diz respeito ao que se pode oferecer como troca e interlocução com projetos autorais de professoras que, muito provavelmente, eu nunca encontraria. Se há a intencionalidade do encontro, há certamente bons compartilhamentos. E se se parte de algo que você domina em sua área de atuação, invariavelmente, há expansão de tudo isso em você.

Dessa feita, aquilo que se chama de ‘zona de conforto’ se alarga e podemos seguir nela, na maior parte do tempo, sem precisar ‘sair da caixa’. Porque é no conforto dos bons encontros que tudo ‘se encaixa’, e a criatividade, como propósito da vida humana, ao nos fazer autores de nós mesmos, pode livremente nascer e crescer.

* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Instagram:@saberescirculares email: [email protected]

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Comentários

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Sofia

08 de maio, 2024 | 15:03

“Também acredito que a IA vai afetar muito o processo de criatividade... o que antes era mais mais trabalhoso vai vem já mais "mastigado" e eu acredito que isso vai nos deixar sim menos criativos com o tempo. E achei bem bacana essa reflexão para exercitar a criatividade em atividades voluntárias/hobbies. Parabéns pelo texto!”

Elza Guimarães

11 de abril, 2024 | 11:40

“Que interessante. Gostei muito da reportagem, Ana Rosa.Concordo plenamente. O talento só desenvolve com o tempo. E nada melhor para esse crescimento do que dedicar um pouco desse tempo a causas sociais.”

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