28 de março, de 2024 | 11:00

Uma questão de concurso

Ana Rosa Vidigal *


Consigna é uma palavra bonita. No contexto de ensino e de aprendizagem, quer dizer fazer um pedido. Sinônimo de enunciado de uma questão. Em uma situação instrucional, você recebe um comando, no formato de consigna, ou seja, de uma solicitação, para responder: um exercício de sala de aula, uma tarefa de casa, uma prova. Questões de escola são exemplos de consigna. E questões de concurso também.

Uma consigna pode ser bem arriscada. O risco está, sobretudo, no seu processo de produção e testagem: primeiramente, elaborar bem a consigna, ou seja, o que se quer pedir; em seguida, mapear o espectro de respostas possíveis a partir dela. Aí está a medida do risco: ao fazer uma solicitação, ou dar um comando, a amplitude de respostas a esse comando ou solicitação é diretamente proporcional à capacidade de sintetizar e conectar bem os aspectos que devem ser levados em conta na resposta para que ela seja como a esperada. Para que seja possível que o respondente alcance o que se propôs na consigna. Ou seja, ligar a pergunta à resposta a essa pergunta. Simples? Nem tanto, e tem coisa que escapa.

Uma vez, envolvida em discussões dessa temática, participei de uma formação sobre letramento e, em que estava incluída a tratativa das consignas. Os professores eram alertados, na ocasião, que um enunciado poderia se tornar uma ‘cilada’: o aluno não respondia ao que se pedia na tarefa, não porque não sabia sobre o que a questão versava, mas pela orientação que a consigna dava, e que poderia direcionar o entendimento para uma resposta diferente da esperada.

Esperada por quem? Por quem produz a questão. E, normalmente, além de produzi-la, é o próprio professor que corrige a resposta. Daí o alerta: apesar de produzir e esperar por uma determinada resposta, isso não o isenta de estampar no padrão de correção, isto é, no gabarito, algo que pode divergir, certa forma, do que a consigna direcionou. Ou seja: entre a questão produzida pelo professor e a resposta esperada por ele, e mesmo produzida por ele como um padrão de resposta, existe um gap – uma brecha, uma lacuna, um vão – cuja extensão só poderá ser percebida quando aparece o vilão: ou seja, a resposta dada pelos alunos, que pode inaugurar uma variedade possível de entendimentos da questão que nem o próprio professor imaginava.

E assim foca-se nessa segunda e mais complexa parte do risco de uma consigna: não somente produzi-la bem-feita, já é trabalhoso, como também o seu gabarito. É isso aí, minha gente: quando aparece o gabarito, ou seja, o “par” ideal da consigna, haja fôlego para que a reposta dada se aproxime desse ideal. Por quê? Porque o objetivo justamente de uma consigna é, no contexto educacional, não ser respondida de forma imediata e óbvia, como no clássico exemplo: “qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?”. A questão da questão é, afinal: uma consigna em contexto educativo, formativo, e, portanto, reflexivo, não se baseia em um “toma-lá-dá-cá”; ela se propõe analítica e reflexiva também.
Quando a resposta é a esperada, bem. “É por aí mesmo”, podemos dizer. Porém, quando surge uma resposta não esperada vinda do aluno, então, escancara-se certamente uma incerteza: será que a consigna poderia ser entendida de outra maneira? “Nunca pensei desse jeito, ou por esse raciocínio”, podem exclamar os professores. E é isso mesmo, “ossos do ofício”. Quantas vezes já me vi em uma situação dessas em meu percurso docente? Algumas tantas.
"“Cuidado com o vão. É o que sugiro para quem se atreve aos riscos da consigna”


Imagine, então, em um concurso, com centena de milhares de concorrentes a poucas vagas. Não somente ao produzir consignas nos exercícios de salas de aula, como também na produção de questões para concursos públicos, professores se veem diante desse impasse: a consigna pode ou não dar margem a algumas respostas que não constam no gabarito?
Recentemente, me vi em uma situação similar, só que em uma perspectiva um pouco diferente. Meu trabalho não era produzir questões de concurso, nem respondê-las, tampouco corrigi-las. Minha função, nessa situação, era avaliar o gap. Isto é, entender a extensão da “lacuna” entre a consigna de um lado, o gabarito de outro, e, no centro, “o vilão”: a resposta do cidadão. Eu não estava avaliando, como disse, se a resposta dada era mesmo a esperada. Eu estava, naquela situação, avaliando a validade da correção. Da questão à expectativa do padrão, quer dizer, ao gabarito disponibilizado pela banca avaliadora do concurso, passando pela resposta apresentada pelo candidato, portanto, refletindo sobre o que seria possível responder, a partir da consigna, para que o ‘risco de acertar’, ao coincidir resposta dada com o gabarito, fosse o máximo possível.

Algumas considerações a respeito desse movimento: primeiramente, e visivelmente, a questão pode abrir algumas outras possibilidades além daquela que o gabarito restringe. A linguagem, da qual é feita a consigna, é mesmo uma construção e, desse modo, seu efeito de sentido depende da ação de interpretação dos dois interlocutores, tanto de quem produz quanto de quem recebe, e isso dá, sim, algumas possibilidades de compreensão responsiva diferentes.
Além disso, uma outra observação que diz respeito a um modelo de resposta, e que, muitas vezes, não existe. Não é divulgada, em muitos concursos, uma resposta ‘ideal’ para uma questão aberta, por exemplo. Apresenta-se uma lista de itens que devem ser contemplados na resposta do candidato, a partir da consigna, para atingir uma pontuação indicada na correção. Mas não se apresenta uma possível resposta discursiva, produzida dentro dos quesitos esperados, dentro do espaço de linhas previsto e com o número de tópicos contemplados. Uma resposta que proporcionaria, a olhos vistos, o casamento perfeito, e com toda ‘pompa e circunstância’, entre a questão e o gabarito.
Finalmente, nessas questões discursivas, a consigna pode se subdividir em dois ou mais tópicos. Com isso, a resposta vai se estender e, com frequência, o número de linhas disponibilizado para a discussão proposta, ou análise, ou ainda a síntese do contraste entre dados apresentados, seja ínfimo. Como, em 15 linhas, descrever, indicar, contrapor, interligar, analisar e concluir “sucintamente”, o que é pedido na consigna, se se toma como referência o que o gabarito impõe?

Um caminho para se descobrir a extensão do desafio é perceber quantos candidatos, envolvidos naquela fase do concurso, atingiram o total dos pontos estipulados para celebrar a cerimônia do ‘casamento’, desta vez, entre o ‘vilão’ e o gabarito. E, quem espera, na verdade, que um vilão se case no fim?
“Cuidado com o vão!” (mind the gap!) é o que sugiro para quem se atreve aos riscos da consigna. Sigamos. Porque o caminho é mesmo feito de incertezas, até para um riscado do ‘certo’ estampado e bonito no caderno, naqueles primórdios da escola, como uma ‘bandeira branca’ em meio aos desafios de uma sala de aula – indicando uma trégua momentânea e firmando uma cumplicidade aliviada entre professores e alunos – consignas, gabaritos e respostas dadas. E está certo isso?

* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores da Educação Básica e do Ensino Superior, e de gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo.
Instagram:@saberescirculares email: [email protected]

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Comentários

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Gildázio Garcia Vitor

28 de março, 2024 | 12:21

“Excelente! Parabéns! Obrigado!
Tive o privilégio de trabalhar com algumas Professoras e Supervisoras no Instituto Educacional Mayrink Vieira e no CSFX, especialmente Adília, Rosane Mayrink, Margarete Abreu e Marilene Tuler, que muito me ensinaram na elaboração de "consignas" inteligentes, contextualizadas e, como diz Margarete, "amarradas".
Muito obrigado por todas as lições, caríssimas amigas!
Também participei de vários encontros oferecidos pela Copeve-UFMG, em BH, quando eram analisadas as provas do Vestibular do ano anterior, que eram muito bons, apesar dos Professores da Universidade, com raríssimas exceções, se acharem a última Coca-Cola do deserto. Ainda mais com os das "roças", formados pela antigas Faculdades de "finais de semana".”

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