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26 de março, de 2024 | 10:00

A magia das palavras e certas coisas da vida...

Nena de Castro *


Eu tinha lá meus 7 anos. Morávamos em um povoado no interior de Minas. Meu pai tinha uma venda de secos e molhados. Mamãe dividia sua vida entre os cuidados da casa, a filharada, os sobrinhos que criava, a horta enormeee que cultivava num terreno logo mais abaixo na mesma rua onde morávamos e a zeladoria da pequena igreja local. Lavava e engomava as toalhas dos ofícios religiosos que bordara com esmero usando sua máquina Singer. As peças brancas enxaguadas com anil rebrilhavam ao sol. Eu ia à escola, felicidade suprema, com saia azul e blusa branca feitas por mamãe. Até hoje, quando visto uma blusa branca, sinto a sensação de limpeza e o carinho materno me envolve...

Pelo caminho eu sentia um orgulho tremendo, pois já sabia ler há uns dois anos. Aprendi ouvindo minha irmã Marcela dando aulas particulares em casa para crianças que tinham dificuldade para aprender. Era o método silábico, eu ouvia e repetia os sons, depois da aula pegava o livro que ela usava e lia. Começava aí a paixão pelas letras que juntas, tinham um significado fantástico e me contavam coisas que às vezes eu não entendia e ia perguntar pra mamãe ou pras minhas irmãs. (Ali pelos oito anos, li às escondidas, Iracema de José de Alencar. E encontrei a palavra ventre. O texto dizia que o branco partia para lutar contra outra tribo, a India o acompanhou pelo mar enquanto foi possível.

Depois voltou enquanto sentia uma pontada no ventre. Entendi que estava grávida, ou melhor, “esperando menino” Então fui perguntar pra mamãe onde ficava o ventre, para ter certeza. Mamãe levou um susto, antigamente não era costume se falar dessas coisas, tudo era secreto, diziam que os nenês eram trazidos pelos teco-tecos que às vezes cortavam nosso espaço e a gente gritava: “ ô avião, traz um nenê pra mamãe!” O avião seguia seu destino, enquanto as mães e moçoilas que ouviam, riam da nossa inocência. Surpresa, ela murmurou que era uma “parte do corpo da gente” e achei melhor não insistir podia levar uns coques.) Mas o que queria contar é que um dia uma senhora cujo apelido era dona Milica e morava perto da igreja, me chamou, dizendo que eu levasse um livro de hinos pra Dona Inês.

“Até hoje, quando visto uma blusa branca, sinto a sensação de limpeza e o carinho materno me envolve”

Percorri rapidamente a distância pequena da venda até a casa. Chamei e ela gritou que eu entrasse. Havia um quarto grande que dava para a sala, cuja porta vivia sempre fechada e estava aberta. Olhei para o espaço, esperando ver uma cama, mas surpresa, verifiquei que havia mercadorias, separada por espécie: tecidos, vestidos, sapatos, camisas, calças, bolsas, cintos, brinquedos, uma infinidade de coisas. Nisso, dona Milica veio ao meu encontro, fechou rapidamente a porta reclamando dos três filhos “que abriam e não fechavam”, me entregou o hinário e fui pra casa.

Ao chegar, pus o livro sobre a mesa e falei pra mamãe o tanto de coisas que vi. Ela me disse pra não falar naquilo com ninguém, se falasse, apanhava. Disse que não contaria a ninguém, mas passei a prestar atenção nas conversas dos adultos e descobri que o marido de Dona Milica pertencia a uma quadrilha que assaltava fazendas e lojas em locais mais distantes. Ele ficava muito tempo fora, dizia que estava cuidando da terrinha que tinham, mas na verdade estava com o pessoal, roubando e praticando toda sorte de delitos, inclusive assassinatos. A polícia já estava de olho nele e um dia chegou a notícia de que tinha desaparecido. Nunca foi encontrado, alguns disseram que a própria quadrilha o matara, enterraram em um quintal e construíram um quarto por cima.

Outros, que tinha sido a polícia que dera jeito nele. Dona Milica se mudou com os filhos, pra perto de Belo Horizonte. E eu descobri que na vida real aconteciam coisas como as que lia escondido nas revistas que papai levava de Valadares, de nome “X-9” e “Meia-Noite”, com contos sobre crimes! Não sei porque me lembrei desse fato hoje. Talvez por causa de Marielle e da prisão daqueles uns que eu espero que apodreçam na cadeia, se bem que vivo no Brasil e sacumé, rico não fica preso! Pelo fim da impunidade, da mortandade e de toda violência contra mulher! E nada mais digo...

* Escritora e encantadora de histórias

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