18 de janeiro, de 2024 | 12:00

Opinião: Descascar a laranja

Ana Rosa Vidigal *

Famílias, escolas e organizações aprendentes, este texto é para vocês. A proposta é tratar sobre nossa capacidade de lidar com a fluidez, as situações disruptivas e a falta de referência que novas circunstâncias nos impõem. Como educadora, acredito ser isso o que se pode deixar de melhor como legado de ensinamento, ou como resultado de aprendizagem.

Para tanto, vamos precisar de uma laranja. E da resposta a uma pergunta relevante: qual é, a seu ver, a disciplina, ou o conjunto de conhecimentos que será central em um novo paradigma social? Robótica, cultura digital, inteligência artificial? Ou ainda, estatística, cálculo, biologia? A resposta, a meu ver, é mais óbvia e primitiva: o socioemocional.

Mais que preconizada na Base Nacional Comum Curricular, a educação socioemocional já é disciplina em algumas escolas do país. Não deveria ser novidade: considerar o socioemocional como competências a serem ensinadas diz sobre o entendimento de algo que realmente importa – seja no mercado de trabalho, na profissionalização, nas relações em família, no âmbito pessoal; enfim, em tudo que envolve a construção de vínculos.

Isso porque educação socioemocional concerne às capacidades de relacionar pensamento e sentimento, por meio de comportamentos e atitudes que nos conectam a nós mesmos e aos outros: mecanismos de autorregulação; construção de ambiência de cocriação; tomada de decisão responsável; enfretamento assertivo de situações novas e/ou adversas. Tudo o que é necessário, e básico, para coexistir nos tempos de hoje.

“Sugiro resgatar, em nossas formações – em casa,
na escola, na empresa – ocasiões criatividade partilhada”


Afinal, o que tem a ver isso com a laranja, e, mais precisamente, com sua casca? A conexão que faço vem de uma ideia que tive há uns bons anos, no início de minha carreira docente, ao lecionar para uma turma do 5º ano.
Como professora regente, intrigava-me o fato de alguns alunos demonstrarem autogestão, autoconsciência e uma consciência social que distinguiam dos demais. Pelas minhas observações, claro, de jovem professora, nada tinha a ver com um padrão específico de cultura cognitiva.

Por exemplo: seria a capacidade de fazer cálculos? Redigir um texto? Propor análises, ainda que iniciais? Ou ainda a formação acadêmica dos pais? Não.

Buscando algo mais sutil e que pudesse ‘medir’, de uma certa maneira, a capacidade desses estudantes de lidar bem consigo e com as circunstâncias, encontrei uma possível 'régua', que eu diria poética, para esse provável indicativo de autonomia: a capacidade de descascar sua própria laranja.

Ora, as crianças, com dez anos naquela época, são hoje adultas. Isso significa, claramente, que o mundo mudou, e, para se tomar um suco de laranja, basta comprá-lo pronto. E está aí o ponto: se as facilidades nos trouxeram comodidade, o que temos perdido constantemente como as oportunidades de desenvolver as competências socioemocionais múltiplas que nos evoca o ato de descascar uma laranja?

Vou mencionar algumas delas que considero cruciais quando se trata de formação de pessoas. Primeiramente, entender que tudo é um processo.

Se não plantamos a laranja, em si, e a compramos no mercado, pelo menos é preciso perceber, pela vivência, que, para tirar-lhe o sumo e apreciá-lo, é necessário: ter a laranja em mãos; ter uma faca em punho; saber manusear a faca; saber usá-la na circunstância, isto é, no contexto de retirar a casca sem tirar a pele da laranja, enfim, desembrulhá-la de seu invólucro original; fazer a ‘tampa’ – inclusive, há todo uma técnica para um aproveitamento perfeito da força que deve ser imprimida para o suco apontar na borda.

Aos meus olhos, à criança era permitido exercitar sua independência, sua satisfação em completar desafios com mediação; desenvolver determinação, resiliência, foco no resultado; aprimorar atitudes de cooperação, colaboração e generosidade, e mesmo celebrar conquistas.

Ensinar a descascar uma laranja a uma criança era uma competência socioemocional plural perfeitamente possível há alguns anos. Uma prática simples, cotidiana, real, palpável e ao alcance das mãos. Ainda que nem todas da minha turma tinham esse saber, literalmente, na ponta da língua.

Enfim, a ligação entre laranjas e socioemocional não se pretende aqui excludente, causal e condicionante; mas acredito que entendedores entenderão. Sobretudo aqueles da minha geração.

E o que nos resta, nesta questão? Sugiro resgatar, em nossas formações – em casa, na escola, na empresa – ocasiões “criatividade partilhada” – ou seja, o manejo do que podemos criar e praticar juntos, e que pode instaurar alguns entendimentos: o tempo de todas as coisas; a progressão e a continuidade; a adaptação e o ajuste; a flexibilidade e a negociação, a troca intergeracional e a circularidade de saberes do quanto somos capazes de ser, de fazer e de contribuir com o mundo, juntos.

* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores da Educação Básica e do Ensino Superior, e de gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo. Instagram:@saberescirculares email: [email protected]

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Comentários

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Adriana Soares Belo

14 de fevereiro, 2024 | 10:29

“Este texto me fez repensar em como estou descascando as laranjas, as vezes devemos passar a faca lentamente, para não ferir, e aproveitar todo o suco, pois por muitas vezes dependendo de como a laranja é descascada, pode ferir-se e nem ser aproveitada tão bem.”

Cleiton Augusto Soares

13 de fevereiro, 2024 | 19:39

“Ana, seu texto me fez voltar no tempo... "Sugiro resgatar, em nossas formações - em casa, na escola, na empresa - ocasiões criatividade partilhada"! Agradeço pela reflexão e proposta. Um abraço! ;)”

Angela Passos

19 de janeiro, 2024 | 09:23

“Hoje queremos fazer tudo rápido, no automático e,se possivel, realizar duas coisas ao mesmo tempo. " Criatividade compartilhada" exige mudança de mentalidade. Conheço pais que praticam com seus filhos a ação de " descascar lentamente a laranja" e estas crianças se destacam das outras, principalmente, com relação a autoestima e independência.
Parabéns a autora pelo alerta!”

Ezequias Pinheiro

19 de janeiro, 2024 | 06:13

“Sou tão tosco, que até hoje não sei descascar uma laranja , mas o que me intriga até hoje também rsrsrs , é que minha avó de 87 anos , compro para ela um saco de laranja com no mínimo 10 unidades e as vezes mais , todas ela descasca circular mente de forma padrão sem danificar a capa da laranja e estilosamente corta a tampa e deixa sutilmente aquela pelinha ,como alça ou dobradiça , e as degusta como uma criança lambona , e fico intrigado depois de ver a laranja esbagaçada e digo : Tanto trabalho era só cortar em cruz, menos fadiga e aproveitava o bagaço , que amo!!!!!????”

Sueli Resende

18 de janeiro, 2024 | 12:35

“O texto prendeu minha atenção de tal modo que viajei no tempo. Penso que pais e educadores, deveriam ler esse texto várias vezes e pensar em sua prática cotidiana. Excelente comparação.”

Bárbara de Castro

18 de janeiro, 2024 | 11:17

“Independência e autonomia é algo q tento ensinar pra minha filha, mas é mesmo um pouco difícil, especialmente nas atividades rotineiras, q é o q ela precisa agora com quase 3 anos.
Ir ao piniquinho sozinha, tirar a roupa, escovar o dente, tomar banho?mas é mesmo um trabalho de paciência, pois demanda muito mais tempo e arrumação da bagunça do q se eu mesma estivesse fazendo.
Ainda sem muita criatividade partilhada?apesar de as vezes tentar colocar algo de diferente nas atividades cotidianas nas minha tentativas de ensinar independência.”

Maurício Flávio dos Santos

18 de janeiro, 2024 | 10:30

“Bom dia, Ana Rosa!
Para ler o seu texto interrompi a faxina que estava fazendo em meu quarto e sentei no sofá da sala. O fiz atentamente por se tratar de um assunto de extremo interesse e que muito me preocupa. Desde frutas que são servidas a crianças e adolescentes em pratinhos, já picadas a pais que passeiam nos parques com filhos empurrando o triciclo com uma haste (já fabricados sem pedal).
Tento entender o que pretendem, mas não consigo.”

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