12 de janeiro, de 2024 | 14:00

Opinião: Sobre atentados à língua portuguesa

Beto Oliveira *

No ano passado a Academia Brasileira de Letras incluiu no Vocabulário da Língua Portuguesa (VOLP) a palavra logar. É claro que quase todos os que me leem já usaram tal palavra antes de 2023. É o que muitas vezes ocorrer com os verbetes da seção “Novas Palavras” que a ABL disponibiliza em seu site. Claro que também tem algo como “motolância” – moto mais ambulância – pouco comum em nosso uso popular. Mas com frequência aparecem palavras do nosso cotidiano: logar, empoderamento, lockdown, streaming, feminicídio, vegano.

Mas, como era mesmo de se esperar, a seção de novas palavras é composta por muitos termos que nos são familiares. Ou seja, eles existem antes de existirem oficialmente. O que reafirma a frase de Millôr Fernandes: "Quando os eruditos descobriram a língua, ela já estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado”.

A ABL apenas acrescenta ao VOLP as palavras que o povo, por meio de neologismos populares, lutas políticas, descobertas científicas, avanço tecnológico, estrangeirismo, e muitas outras formas, acrescenta à nossa língua. Mas não é mesmo papel da ABL antecipar palavras, adivinhar quais irão pegar e quais serão descartadas. Ela faz seu papel de coletar, sempre a posteriori, no caldo linguístico do nosso povo, alguns ingredientes que se repetem.

“Um falante nativo nunca fala errado sua língua materna.
Ele replica, inventa, explora, e manuseia sua língua que
a gramática normativa busca constantemente regular”


Mas essa percepção, por óbvia que seja, não deixa de nos instruir sobre um outro aspecto da língua, observado também no fim da frase de Millôr. Ora, se a palavra falada vem antes da escrita, se a fala popular vem antes da erudita, se a fala do povo faz inventar e reinventar a língua, ela estará sempre à frente dos manuais, não apenas vocabulares, mas também ortográficos e gramaticais.

É mais ou menos essa a advertência que Marcos Bagno faz em "Preconceito linguístico: o que é, como se faz", de 1999. Ele nos lembra que o que encontramos nas gramáticas normativas e nos dicionários é sempre um modelo idealizado da língua. Não a língua real – essa, impossível de se capturar, a não ser com atraso e parcialmente, como a inclusão de logar deixou tão claro.

Por isso, a linguística, já há algumas décadas, aponta para a falta de sentido em dizer que alguém fala sua língua nativa de forma errada. Ela se comunica da forma que a língua lhe foi transmitida e experimenta ela de modo vivo, mutante, volúvel. Um falante nativo nunca fala errado sua língua materna. Ele replica, ele inventa, ele explora, ele manuseia sua língua que a gramática normativa busca constantemente regular. Daí Millôr dizer que os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado. E daí também Manuel Bandeira dizer que o povo é que fala a língua certa, mesmo falando fora da norma. E o poeta recifense ainda completa dizendo que o povo "é que fala gostoso o português do Brasil. Ao passo que nós o que fazemos é macaquear a sintaxe lusíada". Nós, aqui, podendo ser entendido como os eruditos dos quais fala Millôr.

É claro que isso não quer dizer que não exista convenções e que em determinado ambiente ou em tal ou qual documento peça-se, ou mesmo exija-se, que se fale ou escreva de acordo com a gramática normativa. Mas confundir tal convenção com uma regra de ouro que distingue a fala correta da fala errada é, como aponta Bagno, puro preconceito, muitas vezes com um recorte de classe em que se tolera desvios da norma culta comuns em seus grupos, em sua comunidade ou em sua localidade, e aponta a fala de outro local ou grupo como errada ou indigna.

Ou ainda pior, acusa tais falas de atentados à língua portuguesa, quando na maioria das vezes, são os falantes mais "desviantes" que mais contribuem para enriquecer, inventar e recriar a língua. Amar nossa língua é entusiasmar com sua forma viva. E atentar contra ela seria tratá-la como língua morta, uma espécie de latim ou sânscrito, em que tudo está pronto e acabado.

* Psicólogo e Psicanalista. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor dos livros “O dia em que conheci Sophia”, “As Cornucópias da Fortuna” e “O Chiste”

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