30 de novembro, de 2023 | 12:00

Opinião: O celular, a infância e a adolescência

Beto Oliveira *

É cada vez mais evidente o quanto o uso do celular tem se tornado um grave problema social, não apenas, mas principalmente, para os mais jovens. É muito comum escutar a queixa de que a filha ou o filho não saem do celular. Muitas vezes essa queixa vem acompanhada de uma condenação moral e individual desses jovens que abandonam a vida social, não têm força de vontade para largar o aparelho e não valorizam as relações reais da vida.

A preocupação é legítima, uma vez que diversas pesquisas demonstram a relação do uso excessivo do aparelho celular com transtornos mentais, distúrbios do sono, obesidade, queda no desempenho escolar, entre outros fenômenos indesejados. Mas, antes de prosseguir com tais condenações morais, é preciso considerar que o vício em dispositivos eletrônicos e na recreação digital não é exclusividade das crianças e adolescentes.

Mais do que isso, é preciso levar em conta todo o esforço, não apenas de profissionais da tecnologia da informação e programadores de aplicativos, mas também de neurocientistas, psicólogos e outros estudiosos do comportamento humano, para aumentarem ao máximo a adesão do usuário aos programas e aplicativos criados para essas máquinas.

Existe um gasto considerável de tais empresas para mapear até mesmo o comportamento dos neurotransmissores (dopamina, serotonina, adrenalina) em nossa interação com os aplicativos. Tudo isso constantemente atualizado de acordo com informações recolhidas durante a utilização do aparelho e combinadas via algoritmo para aumentar ainda mais a frequência do uso.

“Não melhoraremos esse cenário, principalmente entre os
mais jovens, cobrando ações individuais que busquem
o uso saudável do aparelho”


Os “aparelhos smart”, portanto, não são um objeto qualquer, um objeto a mais, entre outros, do nosso cotidiano. É quase como se fosse um objeto vivo, interagindo via inteligência artificial para nos viciar, nos fazer consumir, nos fazer engajar. É claro que outros objetos de consumo já se esforçavam para tal objetivo. Mas as ferramentas disponíveis nos dispositivos digitais atuais são incomparavelmente mais eficazes e com um alcance muito mais alarmante.

Estudiosos do ramo, como o neurocientista francês Michel Desmurget, demonstram como é injusto, quase cruel, esperar que crianças e adolescentes consigam superar, individualmente, esse esforço conjunto das empresas, profissionais e algoritmos em busca do uso excessivo de tais dispositivos. O que os estudos reunidos por Desmurget no livro “A fábrica de cretinos digitais” revelam é que não melhoraremos esse cenário, principalmente entre os mais jovens, cobrando ações individuais que busquem o uso saudável do aparelho.

Além de incentivar interações individuais mais salutares com tais dispositivos, precisaremos também de um esforço coletivo, da participação da família, de mais campanhas e, principalmente, de uma melhor regulamentação sobre o assunto. Será preciso, inclusive, pensar que para certas idades inexiste o uso saudável de tais ferramentas. A própria OMS, embora de forma tímida em comparação a outras campanhas, vem alertando que antes dos dois anos a recomendação é não haver nenhum tempo sedentário diante de telas e até os cinco o uso não deve ultrapassar a uma hora diária. A OMS não especifica um limite entre 6 e 18 anos, mas estudos indicam que o máximo de uma hora talvez continue sendo o mais saudável.

“A dica, portanto, para os pais, é que
adiem ao máximo a introdução das telas”


A dica, portanto, para os pais, é que adiem ao máximo a introdução das telas. O que, claro, não é fácil, considerando as dificuldades de cada família para atender às exigências da vida contemporânea e a desigualdade do acesso a outras formas de lazer, cuidado e interação. Mas as mesmas pesquisas estudadas por Desmurget mostram que as famílias mais bem informadas sobre os riscos da recreação digital tendem a diminuir o uso. Portanto, mais do que tecer condenações morais, façamos campanhas, disseminemos a informação, falemos sobre o tema e lutemos por melhores regulamentações do mundo digital.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor dos livros “O dia em que conheci Sophia”, “As Cornucópias da Fortuna” e “O Chiste”.

Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]

Comentários

Aviso - Os comentários não representam a opinião do Portal Diário do Aço e são de responsabilidade de seus autores. Não serão aprovados comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes. O Diário do Aço modera todas as mensagens e resguarda o direito de reprovar textos ofensivos que não respeitem os critérios estabelecidos.

Envie seu Comentário