13 de novembro, de 2023 | 15:18
Os ''ridículos'' de um certo Fernando...
Nena de Castro *
A primeira carta de amor que escrevi não foi bem sucedida, deu um cafuçu danado. Comprei um papel perfumado na venda do seu Antonio Antero e caprichei: Querido Neim. Essa carta é para reclamar que você, quando vem de férias, nem liga pra mim. Só olha pra Joaquina, a Delfina e aquela tal de Nilzinha e fica conversando com elas. Eu fico triste e quero que você converse comigo também. Estou esperando as suas outras férias. Um abraço”. Eu tinha uns 9 anos, meu primo Pedro me tomou a carta e mostrou pra mamãe. Dona Inês não achou graça na precocidade da caçula e foi buscar a vara. Fui salva por meu pai, que começou a rir e disse que era coisa de criança, que ela relevasse. Escapei da surra, mas ganhei um terreiro enorme pra varrer, eta ferro!O tal Neim era filho do sócio do meu pai numa loja de tecidos, lá no interiorzão de Minas, onde vivíamos, devia ter uns 14 anos e estudava na cidade grande, creio que em Valadares. Pelo sim pelo não, quando ele veio novamente eu fiquei de longe, creio que nem soube da carta e da minha paixão. Rs. Não sou de ficar enaltecendo o passado, afinal ele já foi, e penso que o melhor lugar do mundo é aqui, e agora”, como diz a canção. Mas uma coisa eu lamento, é que nossos jovens nunca terão a emoção de escrever uma carta, ficar aguardando a resposta, receber o envelope do carteiro, abrir e coração aos pulos, ler, reler, treler”... Depois guardar as missivas numa caixinha com folhas de malva, pétalas de rosa, amarradas com fita de cetim... quanto sentimento, quanta paixão, quanto carinho ou tristeza contidos numa carta...
Ao pensar em cartas eu me lembrei de que de certa feita, uma jovem foi trabalhar em um escritório de uma firma comercial em Lisboa. Não que precisasse, sua família era abastada, ela era culta, falava francês fluentemente tinha noções de inglês e datilografia, o que era bem raro na época. Ela se chamava Ophelia, tinha 20 anos, era magra, olhos e cabelos pretos e baixinha. Foi assim que conheceu Fernando, um sujeito alto, magro, que um dia, ao fim do expediente se declarou, usando versos de Hamlet, beijou-a apaixonadamente e ela correspondeu. Começa então uma relação amorosa, um namoro entre os dois e ela sonhava em se casar com ele, o que não aconteceu. No entanto, ele lhe dedicou versos assim, numa linguagem que só enamorados entendem:
Bebé não é má/É boa até/Bem diga lá/E diga com fé. /Mas quem será?!... Eu sei quem é”.
Ele a chamava de bebé, nininha, bebé anjinho, bebé fera, terrível bebé, bebé pequeno e atualmente mau... Ela o chamava de Ibis bonito, meu preto, meu lindo amo, senhor Besoiro Peçonhento, Nininho adorado, Nininho dos meus Pecados. Ele deixou 51 cartas, ela 230, das quais 110 já foram publicadas, além de 46 postais, dois telegramas e vários bilhetes. Um felizardo colecionador brasileiro chamado Pedro Corrêa do Lago, possui os originais.
Ele lhe escreveu: Não creio ainda no que sinto.../Teus beijos, meu amor, que são/ A aurora ao fundo do recinto/ do meu sentido coração”.
Outro trecho: Bebezinho do Nininho-ninho. Oh! Venho só quevê pá dizê ó bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh! E também tive munta pena de não tá ó pé de bebè pá lê dá jinhos.
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?”
Bem, essas cartas foram escritas pelo maior poeta da Língua Portuguesa, um certo Fernando Pessoa, um mago, um gênio, um querubim das palavras, sonhos, sensações e emoções. Não cabendo em si toda sua genialidade, criou heterônimos, dentre os quais, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Bernardo Soares, todos poetas, todos com características próprias, todos com poemas marcantes.
No entanto, o professor José Paulo Cavalcanti Filho, no livro Fernando Pessoa, uma quase autobiografia” editora Record, 4ª Edição, 2011, nos apresenta cerca de 127 heterônimos do poeta luso! Vai entender tanta caraminhola, criatividade e talento do gajo, quanto mais estudo sobre ele percebo que sua mente era um campo fértil, complexo e infinito...
Se você, leitor, achou infantilmente ridícula a linguagem usada nos poemas para a namorada veja:
Todas as cartas de amor são - ridículas/ Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”
Mas, afinal/ Só as criaturas que nunca escreveram /Cartas de amor/ É que são - ridículas.
Isso escrito pelo vate que nos legou lindíssimos poemas, que afirmou que o poeta é um fingidor” Mar Português O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia” que te diz o vento que passa?” O Guardador de Rebanhos” e muito, muito mais.
Em Tabacaria, escreveu: Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Pois é, à parte isso” a jia-cururu aqui se recolhe à sua insignificância e ante tanta grandiosidade, nada mais ousa dizer! Tenham um bom dia, meus preciosos cinco leitores Au revoir.
* Historiadora e contadora de histórias
Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]
Javé do Outro Lado do Mundo
13 de novembro, 2023 | 19:37Esse aí deixou marcas mesmo, como o maior poeta do século passado, apesar de ser português, mas gostava de imitar a cultura americana, como produto do meio. Opção de escolha de vida. Olavo Carvalho tb escolheu a América para terminar os seus últimos dias de vida. Rs.”
Gildázio Garcia Vitor
13 de novembro, 2023 | 18:15Texto ridiculamente lindo! Parabéns!
Apesar de ser um ridículo, escrevi e recebi muitas cartas de amor- ridículas.”