27 de maio, de 2023 | 07:00
Opinião: Nascente do Espírito
Axel Mirrodin *
É frequentemente desconcertante qualquer tentativa de se fazer uma pequena introdução às quase incompreensibilidades que rondam nas esquinas obscuras da alma, especialmente quando se trata da nossa, aos outros. Um conhecido, de nome Ícaro, nome não muito auspicioso para quem busca uma esperança, disse-me que eu deveria compartilhar os meus talentos com as pessoas. Bem, apesar de, por vezes, desafinar, talvez eu tenha mesmo algo que possa ser considerado uma pequena benfeitoria para a humanidade, uma breve meditação que escrevi após conversar com um amigo.Uma vida digna para si mesmo é uma conquista que nos exige coragem, autodeterminação, persistência e constância”
A questão é que, desde os tempos em que era criança, percebi que um movimento secreto havia se instalado em mim, um anseio da alma, muito desviante das opiniões e valores dos que me cercavam. Durante vários anos, incluindo os da minha vida adulta, recordo, ao mirar um passado agridoce e evanescente, a existência de momentos de profunda inquietação, estados tão primitivos da minha consciência (e da minha autoconsciência), de tão confusa comunicação, se é que pudesse ser dito haver ali alguma, no qual seu único sinal se manifestava por via de uma angústia minha linguagem por excelência, meu desvio por excelência , um vago pressentimento da minha própria liberdade e de como eu desejava me desenredar deste mim mesmo tão simbiótico ao outro, deste modo buscando ser responsável, condutor da minha própria vida e fundador dos meus próprios valores era o desejo de ser um yo, de ser um eu.
Mas, afinal, neste paradoxo, como eu, que já era alguém, ainda estava faltante em sê-lo? No início, por não saber onde deveria buscar este meu desconhecido eu, reproduzia junto à opinião de outros que a identidade profissional era como uma veste que harmoniosamente cobria a nudez desconcertante do eu, não me deixando assim tão exposto e imediato, que essa mesma identidade equivalia-se à independência de ser um eu, afinal, pesa-se na nossa cultura que o trabalho dignifica a existência dos seres humanos, porquanto dá a ela sentido, e, ainda que outros fatores contribuam para a crescente dessa dignidade, é o trabalho que permanece como seu eixo. O trabalho nos oferece um cargo civil, e nossa identidade pessoal se desenvolve enquanto recebe muitas colheradas da papinha social.
Assim, não tardamos a crescer bem nutridos de uma série de elementos pertencentes a uma categoria social universal professores, policiais, palhaços , esquecendo-nos de que não somos somente as atividades que desempenhamos para a sociedade, de que as máscaras que dispomos e que escondem nossa faceta mais verdadeira não está virada ao sol e ao concreto; suas travessas e alamedas são internas, e a profunda dignidade, às vezes, tem sua moradia na penumbra da última casa de uma rua sem saída.
Se o fim da humanidade fosse o aperfeiçoamento da espécie e de coletividades por meio da produção de bens, especialmente científicos, coisa que é realizada majoritariamente por meio do trabalho, pessoas que não o possuíssem teriam sua própria humanidade em uma suspensão irônica, sendo como professores de ginásio que terminam a vida como agitadores de plateia em um circo. O que poderíamos dizer, ademais, das pessoas que possuem uma profissão da qual não veem sentido algum?
Elas continuam a ser dignas jurídico e socialmente, mas, quando elas se confrontam consigo mesmas, o que são? E este é um ponto crucial. Pois é fácil morrer de inanição, dia após dia, por ser incapaz de criar um sentido pelo qual viver. Sem o sentido não há um eu para si mesmo, mas apenas um eu para o outro, e estes dois eus não são iguais entre si. Há a dignidade assegurada juridicamente, por meio de uma constituição federal, e há a dignidade por se ter um trabalho que produz benesses das quais eu mesmo jamais poderia promover. Há uma dignidade em potência mesmo para os que não têm um trabalho refiro-me a uma expectativa de dignidade, que logo seria alcançada conforme novas oportunidades surgissem e que pode ser tolerada pela comunidade que frequentemente se lamenta do infortúnio do desempregado.
Assim sendo, do ponto de vista da lei somos naturalmente dotados do direito à dignidade; do ponto de vista social, a dignidade é um componente a ser conquistado por meio da expressão do autovalor junto aos bens produzidos para a sociedade; do ponto de vista da vida interior, entretanto, a dignidade é algo que talvez nunca possa ser vivenciado, porquanto uma vida digna para si mesmo é uma conquista que nos exige coragem, autodeterminação, persistência e constância e, claro, condições materiais para que seja possível desempenhar tais e outras virtudes.
Do ponto de vista da lei somos naturalmente dotados do direito à dignidade; do ponto de vista social, a dignidade é um componente a ser conquistado”
A falta de um cargo civil, de uma profissão, constitui uma mácula temporária à honra, que é esquecida tão logo se encontre um trabalho; a falta de si mesmo, entretanto, gera um miasma chamado desespero, que põe a alma em constante alerta para não sucumbir devido à perda de si mesmo; este é um mal dificílimo de ser tratado, uma doença grave onde o enfermo é convidado à força a desempenhar, ironicamente, os papéis de médico e de sacerdote simultaneamente.
Existe a dignidade mesmo para aqueles que não tem um eu para si mesmos, pois a dignidade é, para o que é externo, um ponto de partida mas, para si mesmo, um ponto de chegada. Para nossa cultura, ela está lá. Ainda que eu não achasse uma ideia pela qual viver, deveria ser responsável a ponto de pagar o preço de seguir pela vida sem tê-la, de alicerçar o meu eu no vento, vivendo uma vida cheia de dignidade e sem um eu para mim mesmo, acamado como um enfermo em mim mesmo; ainda que meu interior não correspondesse ao exterior, que eu fosse como um torturado no Touro de Fáleris que, quando grita de terror, produz doce música para os outros escutarem quando o som vibra o apito na boca do animal e, certamente, os ouvintes se deliciariam com tal agradável música! , ainda assim outras pessoas poderiam dizer: este homem é muito digno! Embora estejamos em uma época profundamente científica, todavia não existe uma régua para se medir o tamanho da vida interior de alguém, o do quanto alguém é a si mesmo para si mesmo. Essa régua é única, e a angústia é um convite para essa vida interior, para o encontro com o espírito em sua nascente.
* Graduado em filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto
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Gildázio Garcia Vitor
27 de maio, 2023 | 13:23Interessante! Mas um pouco pedante e erudito, deve ser coisa de Filósofo. Até um dos meus preferidos, Nietzsche, que, para mim, também é um Poeta, sempre foi difícil, isso muito antes dos primeiros sintomas da loucura.”