21 de dezembro, de 2022 | 13:00

A crise é também estética

Beto Oliveira *

Com o fim do mandato de Jair Bolsonaro e sua consequente mudança do Palácio da Alvorado e do Planalto, voltou a circular nas mídias sociais a frase “a crise é também estética”. Isso porque entre os materiais do acervo do presidente há uma escultura de madeira de sua pessoa e outra, também de madeira e também em tamanho real, de uma moto, chamada de Harley Mito. Isso sem falar em um revólver com seu rosto e um emblema do Aliança Brasil feito com cartuchos de balas de revólver; além, é claro, de quadros desenhados ou pintados por admiradores com traços bastantes peculiares, para dizer o mínimo. Tudo junto parece uma exposição de arte Kitsch, nome usado na estética para designar uma categoria de objetos vulgares que copiam elementos da cultura erudita, mas sem nenhum critério e com muito pouco senso crítico.

As peças reacenderam, então, o debate sobre o quanto a crise estética se estende a outras crises: ética, moral, social e política. É uma questão delicada porque significaria dizer que o mau gosto implica em posições e decisões equivocadas em outras áreas que nada têm a ver com a beleza. Inclusive, pode ser muito perigoso, e mesmo preconceituoso, associar o mau gosto a outros campos, uma vez que bom e mau gosto são categorias subjetivas que variam com o tempo, com a cultura e, inclusive, com quem está o poder.

No entanto, o debate é mais complicado e profundo do que parece, tendo a filosofia, inclusive, muitas vezes sobreposto a discussão ética à estética. Estética vem do grego aisthésis, que significa sensação. Dessa mesma raiz veio palavras como anestesia (não sentir nada) ou parestesia (sentir algo estranho, como o formigamento de um membro). Portanto, a estética tem a ver com nossa capacidade de sentir o mundo, experimentar seus sabores. E nesse sentido, nossa abertura para a estética também diz algo – embora não determine – sobre nossa empatia, nossa sensibilidade, nosso olhar para o que nos cerca.

“Nossa abertura para a estética também
diz algo sobre empatia, nossa sensibilidade,
nosso olhar para o que nos cerca”


Na cultura popular, tal encontro entre ética e estética é ilustrado jocosamente com a diferença entre quem mata uma barata e quem mata uma borboleta. O primeiro torna-se herói, o segundo, vilão. Jorge Mautner eternizou o dilema em sua música Rock da Barata, que narra a morte de uma barata chamada Lili. A barata inconveniente acaba sendo esmagada pelo pé do eu lírico da música, que se compadece com a coitada e canta: “Às vezes fico pensando/Que estranho esse planeta/Se em vez de uma barata/Lili fosse uma linda borboleta”.

Mas não é apenas o debate metafísico da filosofia mais complexa ou a dúvida existencial do artista que denunciam essa relação – tão intrínseca quanto complicada e perigosa – entre ética e estética. Em nosso próprio dia a dia encontramos vários exemplos que aproximam tais campos, sendo o mais direto e fácil de reconhecer, as falas direcionadas às nossas crianças. Não é nada raro, ou talvez seja mesmo a regra, que a criança primeiro seja ensinada sobre o que é belo ou feio do que o que é certo e errado. Quando comete alguma travessura, dizemos a ela que isso é feio, que não é bonito. Ou seja, em geral, somos iniciados no campo ético por meio do campo estético e isso não parece ser fortuito.

Enfim, é verdade que ética e estética se relacionam, mas estejamos também atentos aos perigos de ver nessa relação algo muito simplista e determinante. A crise, sim, é também estética, mas a estética nesse caso parece apenas o sintoma, o sinal de outras crises, e não será policiando o que é bom gosto e mau gosto que as resolveremos, embora celebrar o fim de um governo que ataca, ofende e prejudica a cultura e as artes pode sim ser um bom começo.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor dos livros “O dia em que conheci Sophia”, “As Cornucópias da Fortuna” e “O Chiste”

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