13 de dezembro, de 2022 | 13:00
Fome, um problema multidisciplinar
Marcelo Cândido da Silva * Margarida Maria Krohling Kunsch ** Sílvia Helena Galvão de Miranda ***
De acordo com o Relatório Anual da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado em junho de 2022, entre 702 e 828 milhões de pessoas enfrentaram a subnutrição no ano de 2021, ou seja, entre 8,9% e 10,5% da população mundial. No Brasil, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do IBGE, a insegurança alimentar grave esteve presente nos lares de 10,3 milhões de pessoas (4,9% da população), significando a falta de alimentos para todos os moradores, incluindo as crianças. Estudos mais recentes, contudo, já refletem o impacto dos dois anos de crise da covid-19 no agravamento deste quadro. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) indicam que, em 2021, a Insegurança Alimentar Grave atingia 33,1 milhões de brasileiros.A principal dificuldade para definirmos a fome reside nesse paradoxo entre a universalidade do fenômeno e a singularidade de suas manifestações. Mas qual a utilidade de uma tal definição? É importante ressaltar que não se trata de um simples exercício da curiosidade intelectual. O entendimento sobre o que é a fome impacta diretamente nas medidas que são adotadas para o seu combate.
Os relatórios anuais da FAO são o melhor exemplo dessa estreita relação entre diagnóstico dos problemas, definição dos conceitos e formulação de políticas públicas de combate à fome. Em 2019, o relatório reconheceu, pela primeira vez, que o objetivo de erradicar a subnutrição em 2030, estabelecido pela própria FAO, em 2015, não seria mais alcançável. Dentre as principais razões apontadas para o avanço da subnutrição, o relatório destacou a crise global causando a contração no crescimento dos países de renda média e dos exportadores de alimentos, conflitos e instabilidades políticas ocasionando migrações ao redor do mundo e as mudanças climáticas, que afetam, inclusive, os sistemas de produção de alimentos e de alimentação.
O entendimento sobre o que é a
fome impacta diretamente nas medidas
que são adotadas para o seu combate”
O diagnóstico acima, por si só, já evidencia a amplitude e a multidisciplinaridade dos fatores determinantes da fome, em suas variadas faces e graus. Desde a fome no sentido mais grave, a falta de acesso a refeições diárias, até a sua relação com a qualidade nutricional do alimento que é produzido, distribuído e consumido e que pode levar tanto a problemas de subnutrição quanto de obesidade. Mais além, o diagnóstico da FAO torna também evidente a ligação direta da fome com o problema das mudanças climáticas.
Para descrever os objetivos alcançados pelas políticas públicas de combate à fome, recorre-se, desde a década de 1970, à noção de Segurança Alimentar”, que significa acesso a uma alimentação segura, nutritiva e suficiente durante todo o ano para erradicar todas as formas de má-nutrição. A Insegurança Alimentar” (IA) não se restringe, portanto, à produção e ao consumo de alimentos, mas diz respeito também a todas as etapas das atividades conduzidas nos sistemas agroalimentares, desde a escolha dos insumos utilizados na produção agropecuária, da tecnologia e sistemas de produção até a etapa pós-consumo, da deposição de resíduos e restos de alimentos. A IA está estreitamente relacionada a um conjunto bastante heterogêneo de fenômenos: as desigualdades sociais, as situações sanitárias, as crises econômicas, a instabilidade política, os deslocamentos populacionais, a modificação de hábitos alimentares, assim como a qualidade das instituições democráticas e as mudanças climáticas, entre outros.
A Pesquisa de Orçamentos Familiares mostra
que a insegurança alimentar grave esteve
presente nos lares de 10,3 milhões de pessoas”
Ao trabalhar nos diagnósticos do problema em suas diversas facetas, há que se considerar recortes que, mais uma vez, destacam a complexidade da Insegurança Alimentar. A fome nas áreas rurais do Brasil é um desses recortes, em que, além de passarmos pela discussão dos sistemas de produção prevalecentes, da estrutura agrária propriamente, dos instrumentos de apoio à geração de renda no campo, do necessário acesso mais amplo e democratizado à informação, à assistência técnica e às tecnologias de comunicação, se aprofunda em questões antropológicas. Há muitas espécies de plantas alimentícias, inclusive que valorizam a flora nativa dos diferentes biomas brasileiros, cujo hábito alimentar moderno e urbano levou ao quase desaparecimento da mesa dos consumidores, até mesmo dos rurais. Seu consumo, se retomado e incentivado, poderia contribuir para o melhor atendimento das necessidades nutricionais e a mitigação da fome no campo.
Assim, parece óbvio que para o enfrentamento deste problema, é necessária a união de esforços multi e transdisciplinares, com o trabalho conjunto de especialistas em agricultura, meio ambiente, urbanização, saúde, economia, antropologia, história, engenharia, comportamento alimentar, comunicação e políticas públicas, entre muitos outros.
O Grupo de Trabalho Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome foi criado pela Reitoria da Universidade de São Paulo, em setembro de 2021. A constituição deste grupo multidisciplinar veio dar continuidade a iniciativas anteriores, como a realização do simpósio USP: Políticas Públicas para o Combate à Fome, ocorrido em 12 de maio de 2021, que resultou em um livro eletrônico com esse mesmo título. Desde setembro de 2021, este grupo de professores, juntamente com pesquisadores de pós-graduação e de pós-doutorado, vem trabalhando com ações concretas, mediante estudos e diagnósticos sobre a situação da alimentação, da insegurança alimentar e do combate à fome que afeta diretamente a população brasileira mais carente, assim como verificando as políticas públicas já existentes neste contexto.
A existência deste grupo de trabalho expressa o compromisso da nossa Universidade em contribuir com os órgãos públicos e com a sociedade civil na proposição de políticas públicas que possam abrir novas perspectivas para mitigar os graves problemas da fome, da subnutrição e da Insegurança Alimentar.
* Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
** Professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
*** Professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Membros do GT Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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