CADERNO IPATINGA 2024

14 de agosto, de 2022 | 13:00

Crônica aos Pais

William Passos*

Só guardo na memória duas lembranças do meu pai. Em nenhuma delas me recordo do rosto dele. Na primeira, fui acordado de madrugada para assistir a um jogo de futebol. Foi minha primeira vez num estádio, mesmo não saindo do sofá da sala. Minha primeira memória afetiva paterna. A única que gostaria de guardar.

Mas me lembro também de um domingo de manhã. Dormi na casa de um tio e minha mãe me acordou cedo. Olhava para o alto de uma parede branca e para o início de um teto. O reflexo do sol da janela aberta nas minhas costas iluminava tudo. Recebi a notícia: nunca mais veria novamente o rosto que não me recordo. Não me lembro se o choro ou a dor dilacerante veio primeiro. A dor era como se me abrissem a barriga e arrancassem tudo de dentro, ainda vivo. Só lembro que imediatamente me veio uma pergunta à cabeça: quanto tempo ainda falta para eu morrer? Ainda não havia completado nove anos. Foi o aborto da minha infância.

Alguns meninos deslocam a referência paterna para um tio, um avô ou alguma outra figura masculina próxima. Não consegui. Fechei-me no meu próprio luto. Convivi com minhas ondas de choro até o que se chama final da adolescência. Não sei se tive adolescência. Todas as minhas descobertas de homem foram solitárias.

Cresci ouvindo falar do esforço heroico de mães que também são pais. De fato, mães solo são heroínas, mas não são pais. Não para os meninos. Ser pai não é só prover. Não é só colocar comida dentro de casa. É ouvir também as estórias que não ouvi. Conversar as conversas que não conversei. Antecipar as descobertas de homem. Ter com quem elevar o tom de voz e agredir verbalmente, mas, logo em seguida, ficar tudo bem. É ser acordado de madrugada para assistir a um jogo de futebol. É ir a um estádio, mesmo sem sair do sofá da sala.

Nenhum abraço no Dia dos Pais. Nenhuma foto no Natal. Nenhuma vela soprada no meu aniversário na frente dele. Nenhum aniversário dele em que me lembro de estar presente...

Ninguém para falar do meu 10 em Ciências, a matéria mais difícil da escola. Ninguém para ver a primeira vez que andei de bicicletas sem rodinhas e me senti adulto. Ninguém para falar do pênalti que peguei dando uma “ponte” espetacular. Ninguém para contar que eu gritava para assustar o goleiro adversário quando a bola vinha (genial ideia que inventei) e assim ter mais chances de fazer o gol...

Ninguém para ver minha primeira barba aos 13 anos, minha aprovação no vestibular com apenas 17, meu primeiro capítulo de livro com 20 anos, minha colação de grau na faculdade com 21... o início da minha calvície aos 32 e os primeiros pelos brancos da minha barba, ainda tímidos, aos 36 anos...

A vida como um sopro. O tempo escorre pelos dedos. Por isso, abrace seu pai, beije seu pai, diga que o ama. Se estiver longe, pegue o telefone. Pegue agora! Não deixe que seu amanhã seja igual ao meu: "só um ontem com um novo nome"!

Em memória do homem sem rosto cujo sobrenome herdei, ofereço esta crônica aos pais, como um breve ensaio da saudade do que não tive. Um Feliz Dia dos Pais de guardar entre as mais belas lembranças!

*Vencedor, no ano de 2003, aos 17 anos, do concurso de redação “O livro que mais amei”, promovido pela Academia Brasileira de Letras para alunos do 3º ano do ensino médio. Colaborador do Jornal Diário do Aço desde 2019. Email: [email protected]
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Comentários

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Tião Aranha

14 de agosto, 2022 | 11:06

“Bom texto. O pai é o maior ídolo que um filho tem.”

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