24 de maio, de 2022 | 14:36

O dia mais feliz...

Nena de Castro *

Estava na praia, lá em Aracaju, com minha família há tempos. Contei uma História para uma menininha que chorava, com medo de entrar na água. O pai, impaciente, queria que fosse de qualquer maneira e a mãe tentava resolver o conflito. Pedi licença e comecei a contar a história do sapinho que engana a cobra. Alguns adultos se aproximaram, aplaudiram e pediram mais, então contei a do João sem Medo. Depois nos separamos, minha turma tinha voltado, eu me sentei debaixo da sombrinha e uma senhora que ouvira as histórias se aproximou. Era magra, mais ou menos da minha altura, cabelos curtos encaracolados, pele escura, olhos melancólicos e profundos.

Pedi que se sentasse, começamos a conversar.

-“Sabe, disse ela, suas histórias me fizeram voltar aos meus tempos de menina. A gente gostava de ouvir histórias contadas por minha mãe, antes de dormir. Por falta de sorte, perdemos o pai e logo depois nossa mãe também morreu. Tínhamos avós que possuíam uma casinha e alguns animais, mas a vó disse “que não ia ficar com essa pretaiada” e nos expulsou.

Meu avô queria ficar com a gente, ele nos amava, mas era já idoso e temia a sua mulher. Então de dia, nós ficávamos escondidos no pasto, ou íamos para as casas próximas, mas ninguém nos ajudava. À noite, meu avô dizia que queria jantar na escada do alpendre e na escuridão, (não tinha luz elétrica) fingia que comia, tirava a comida da boca e colocava na minha boca e na do meu irmão. Aí, íamos dormir debaixo da casa, onde dormiam os cachorros, a gente se encostava nos animais e pegava no sono, saindo cedo no outro dia, antes da vó abrir a porta da cozinha e ver a gente. Quando minha avó ia à rua comprar alguma coisa, o vô insistia em ficar, então nos dava comida, a gente podia tomar banho de bacia, mas tudo com pressa. Mas o vô morreu e alguns vizinhos falaram que iam arranjar alguém que nos abrigasse, então um casal dono da maior fazenda por lá, levou a gente. Depois deu meu irmão pra outro fazendeiro e fiquei só.

Fui transformada em faz-tudo dentro de casa, verdadeira escrava. Limpava, cozinhava, lavava e passava roupa, sempre apanhando por qualquer coisa.

Quando fiz 18 anos, apareceu um soldado na região, começamos a namorar de longe e ele me pediu em casamento. Afinal, pensei, vou ser livre, ter meu marido, minha casa, filhos. A alegria durou pouco, pois comecei a apanhar do meu homem praticamente todos os dias. Cozinhava, mantinha tudo organizado, mas ele chegava irritado do serviço e descontava em mim. Só não apanhava no dia em que tinha filho, mas no segundo dia de resguardo a pancadaria recomeçava.

Tive quatro filhos, dois rapazes e duas moças, hoje estão casados com boas pessoas e me tratam bem.

Aí um dia ele morreu. E finalmente eu parei de ser judiada, entrei pra escola, aprendi a ler.

Então, outro dia, numa reunião do grupo de apoio aos Idosos, nós, mulheres tivemos a oportunidade de contar qual o dia mais feliz de nossas vidas. Algumas falaram que foi quando os filhos nasceram, outras quando se casaram, uma teve uma festa de 15 anos...

Quando chegou a minha vez eu disse simplesmente: o dia mais feliz da minha vida foi quando meu marido morreu. Algumas ficaram horrorizadas, me estranharam, então eu contei umas coisinhas pra elas. Acabaram batendo palmas pra mim. Ainda foi tarde! Não vou ser hipócrita pra agradar os outros. Não mesmo!” (E nada mais digo!)

* Escritora e encantadora de histórias

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Comentários

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Tião Aranha

24 de maio, 2022 | 17:24

“Cada um de nós carrega esse legado de Sociedade paternalista e patrimonialista. É por isso que precisamos eleger um pai cívico e não um pai da nação, mesmo porque, neste caso, todos nós já temos maioridade. Risos.”

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