26 de março, de 2022 | 08:21
A exclusão digital e os desafios do exercício da advocacia
Hiltomar Martins Oliveira *
O impacto da tecnologia sobre nossas vidas não se limita tão-só à facilitação de nossa sobrevivência, ao aumento do nosso conforto pessoal, à diminuição da insegurança em relação ao amanhã, à garantia de previsibilidade na luta contra as forças da natureza e no aumento da capacidade de extrair dela cada vez mais recursos naturais, às possibilidades de explorar mais profundamente o nosso planeta e a conhecer outros através de satélites e viagens espaciais, para citar alguns exemplos.Grandes expoentes do mundo científico têm manifestado sua apreensão e incômodo quanto à acentuada dependência tecnológica (leia-se: máquinas e processos) pelas sociedades humanas no mundo contemporâneo.
Tanto quanto à inclusão digital do jurisdicionado (aquele que procura o Poder Judiciário), quanto de todos os profissionais envolvidos na busca e na aplicação da justiça (advogados, serventuários, juízes, auxiliares da justiça etc.), há um longo caminho a se percorrer no Brasil, atualmente.
Segundo o último relatório do Conselho Nacional de Justiça, tínhamos, em 2021, havia mais de 75 milhões de processo em andamento (cerca de três para cada brasileiro), considerando inclusive os que estão suspensos dependendo de decisões dos tribunais superiores. Deste total, mais de 80% por cento estão nos tribunais de primeira instância (nas comarcas das capitais e do interior), e destes, mais de 60% não são arquivados (resolvidos) em menos de dois anos e meio. Por outro lado, quase 100% dos processos que dão entrada nos fóruns, hoje, são por meio eletrônico (ou seja, digitalizados). Mas sobre a quantidade de processos físicos suspensos ou arquivados, deixou o relatório de indicar números precisos.
Quase 100% dos processos
que dão entrada nos fóruns,
hoje, são por meio eletrônico”
A advocacia brasileira rapidamente adaptou-se a esse ambiente eletrônico, mas enfrenta desafios de outra natureza, principalmente no que diz respeito à baixa confiabilidade das chamadas plataformas digitais, onde ocorre a movimentação dos processos e o acesso direto a eles. São comuns e recorrentes as queixas quanto às altas taxas de indisponibilidade. Então, quando se procura a assistência técnica dos setores de informática dos tribunais, com raras exceções, os meios de contato oferecidos são ineficazes, não assertivos (telefones 0800; e-mails diretos; telefones diretos: horas de espera sem ser atendido, respostas que demoram dias...).
Os advogados trabalham com prazos curtos, e o estresse em situações problemáticas, que precisam de respostas rápidas, torna-se lugar comum nos escritórios. Imagina-se qual o desespero do profissional que pode vir a perder um prazo, um processo, uma audiência, por falha nos sistemas de comunicação dos tribunais!
Recentemente, com o advento da pandemia do COVID-19, os problemas se aguçaram com a adoção do ambiente virtual para a realização de audiências e da restrição de contato físico do advogado com os magistrados e serventuários da justiça, estes normalmente trabalhando em regime de home-office (mesmo durante a realização de audiências). Contudo, mais uma vez, a advocacia reagiu com afinco e tem aceitado transformar os próprios escritórios em extensões de salas de audiência dos tribunais, sem nenhuma contrapartida dos próprios tribunais.
Nesse caso, visível é o prejuízo, pois são necessários investimentos para os quais nem sempre se está preparado, a fim de adequar as instalações dos escritórios de advocacia para a realização de audiências virtuais, de modo a obedecer aos critérios de segurança, sanitários e processuais exigidos pelos próprios tribunais. Obviamente, aprofundou-se a situação de desigualdade no exercício de uma profissão que é essencial à prestação jurisdicional, uma vez que escritórios grandes e com situação financeira mais equilibrada abocanharão, com certeza, fatias consideráveis de clientes.
A exclusão digital, então, opera em vários sentidos e em vários níveis. Quando se pensa na população brasileira, então se verifica que não importa o número de celulares vendidos ou de posse de cada um, mas se deve levar em consideração a familiaridade, o conhecimento e a habilidade para usar uma parte essencial dos aplicativos, plataformas e demais recursos oferecidos, nos quais se desenvolverá a atividade judiciária. Em geral, as pessoas sabem atender e fazer uma ligação telefônica, usar um Whatsapp, mas têm dificuldades em manejar motores de busca, tradutores, utilizar aplicativos de reuniões virtuais, verificar e alterar configurações do seu próprio aparelho celular, entre tantas outras.
O tempo da máquina não
é o tempo do homem, pois
ela, diferentemente dele,
não precisa repousar entre
a noite e o dia”
Mas mesmo entre os advogados, a exclusão digital também é uma realidade, porém, muito mais disfarçada e imperceptível. Ela ocorre, por exemplo, quando os tribunais não disponibilizam plataformas digitais com certificados válidos, com garantia que sejam reconhecidos pelos navegadores dos computadores dos usuários como seguros; quando as reclamações dos usuários não são atendidas, quer pela indisponibilidade dos meios de contato, quer pela demora ou ineficácia das soluções apresentadas; ou ainda, quando os sistemas não operam com disponibilidade de 100%.
Outra faceta da exclusão digital são as próprias perspectivas de evolução da dependência do homem da máquina computador. Refiro-me, especificamente, ao avanço do uso da inteligência artificial (IA, em português ou AI, em inglês) no direito, o que não pode ser menosprezado, uma vez que já existem estudos para sua implantação em tribunais. Ora, se no ambiente atual, problemas simplórios de informática e de comunicação digital ainda não foram resolvidos, o que acontecerá quando as máquinas estiverem ditando sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias, elaborando pareceres e petições iniciais em processos?
Talvez já não haja mais tempo para se buscar soluções ou mesmo trilhar saídas alternativas, como, por exemplo, mudar de profissão. Afinal, o tempo da máquina não é o tempo do homem, pois ela, diferentemente dele, não precisa repousar entre a noite e o dia para trabalhar e produzir.
* Advogado, escritor e professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais - IAMG)
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Tião Aranha
27 de março, 2022 | 08:20Muito mais do que isso, antes de exercer o ofício todo advogado deveria ter um curso de teologia, quanto às tics, o domínio do inglês e ter um hacker analista de sistemas em casa sempre ajuda. Risos..”