09 de setembro, de 2021 | 14:22

1964: O ano que não terminou

Hiltomar Martins Oliveira *

O Brasil de 2021 ainda dorme e acorda assombrado pelos “fantasmas de 31 de março de 1964”, pois esse é um ano que não quer terminar depois de mais de 57 anos. Tomemos um único exemplo, extraído do que se tem passado no campo da política nacional: o Poder Executivo federal tem sido exercido, sem exceção, por personagens egressos dos quadros que se formaram no período de 1964 a 1985. Citem-se alguns nomes: José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e, por último, Jair Messias Bolsonaro. O mesmo fenômeno se repete, em menor ou maior escala, nas esferas estadual e municipal, e também em todos os legislativos.

Às vezes, tem-se a impressão de que aquele longínquo mês de março de 1964 ficou congelado no tempo e os personagens que dele participaram, ou nele cresceram, uma vez alçando o comando dos poderes ou deles participando como representantes do povo, voltaram agindo e pensando como os revolucionários da “Revolução de 31 de março de 1964” (Nota: adoto, aqui, a mesma nomenclatura que está a nos textos de todos os atos institucionais baixados naquele período, notoriamente no A.I. 1 e A.I. 5).

Apegam-se, fixamente, ao mesmo ideário dos governantes daquele período, e mais, não aceitam, e nem permitem, a abertura de discussões para reformar, verdadeiramente, o sistema político de nosso pais, e muito menos a ascensão de novas lideranças, desvinculadas e descomprometidas com aquele passado, que resiste em não passar.

Assim, pode-se dizer, sem medo de exagero, que a política brasileira estagnou-se, presa a um modelo ineficiente, incapaz de dar respostas positivas e pontuais às nossas necessidades mais básicas. Em qualquer parte do mundo, a política deve se antecipar aos problemas sociais, assumindo um papel de protagonista e não de simples expectadora, comprometida como o bem-estar e manutenção do bem comum, pois é o mínimo que os cidadãos esperam de seus representantes eleitos.

Uma das causas dessa estagnação pode-se atribuir, sem dúvida, à brusca interrupção do processo eleitoral em 1965, quando as eleições passaram a ser indiretas. Essa pode ter sido a mais nefasta herança deixada por aquele período, pois alterar, ou paralisar, um processo eleitoral é condenar o destino político de uma nação ao fracasso e abrir as portas aos ladrões da democracia, aos oportunistas de plantão, que aguardam somente o vácuo de poder, para se impor. É condenar ao analfabetismo os jovens, que crescerão sem o exercício salutar do voto, que funciona como uma escola de aperfeiçoamento da vontade política e de fortalecimento das instituições democráticas.

“Apegam-se, fixamente, ao mesmo
ideário dos governantes daquele
período, e mais, não aceitam, e
nem permitem, a abertura de discussões
para reformar, verdadeiramente, o
sistema político de nosso país”


Sem o voto, definha a crítica política e sem esta, não pode sobreviver a democracia. Neste momento, a pouco mais de um ano das eleições para escolha do presidente da República, dos governadores dos estados, de senadores e deputados estaduais e federais, assiste-se a uma deflagração prematura da campanha eleitoral de 2022: as pesquisas pré-eleitorais sucedem-se freneticamente, quase que quinzenalmente, ditando os movimentos de aparecimento e desaparecimento de candidatos, de alianças pré-eleitorais dos partidos.

A seu turno, o presidente da República, com a desenvoltura de um candidato à reeleição, ora dissimuladamente, ora abertamente, profere discursos e falas midiáticas onde parece dar a senha para a mobilização de seus simpatizantes; outras vezes, promove atos de autêntica campanha eleitoral, em “motociatas”, montam-se palanques com direito a todos os tipos de discursos. Nos círculos do poder, movem-se peças chaves, de modo não apenas a contornar as incontáveis crises de poder, mas também na tentativa de cooptar apoiadores e confirmar alianças para o próximo ano; promovem-se minirreformas ministeriais e distribuem-se verbas milionárias por meio das emendas parlamentares. A lista de manobras parece não ter fim e os meios de comunicação têm-se incumbido de noticiá-las a contento. Mas os “fantasmas de 1964” continuam em cena, a postos, reproduzindo, aqui e acolá, as ideias daquela época.

Assim, ouve-se falar, cada vez mais frequentemente, em polarização de tendências, num esforço de capturar a vontade política do eleitor e dirigi-la para a única arena que reconhecem como válida para um pleito político: ou direita ou esquerda. Trata-se de uma manobra perigosa, pois remete ao modelo político pós-1964: não pode haver uma terceira opção, ou o cidadão é contra ou a favor das escolhas que estão colocadas e garantir que ele não participe, diretamente, do processo de escolha.

Portanto, é preciso estar em guarda para que o eleitor não seja induzido a somente escolher lados, pois, no fundo, na democracia, tem de se escolher nomes representativos da preferência do eleitor. Rotular caminhos é uma estratégia perigosa e usada para mascar o processo democrático de eleição. Afinal, conforme está escrito na Constituição de 1988, qualquer cidadão pode se lançar à candidatura da presidência da República e terá de demonstrar a respectiva competência para auferir novo mandato.

Isso não é romantismo político, mas se trata de reviver e revigorar a autêntica prática da democracia, hoje, lamentavelmente, tão descurada, desfigurada e descaracterizada, o que tem enfraquecido os próprios governos democráticos. Ora, os “fantasmas” são astutos, e não satisfeitos com a excludente de “polarização” das opções eleitorais, turbinam o famigerado “fundo eleitoral”, que, na prática, funciona com um filtro político e um meio de garantir a fidelização de apoio pré-eleitoral, operando através da distribuição de emendas legislativas vultuosas a deputados e senadores da República. Esses, por sua vez, reproduzem o sistema nos níveis estadual e municipal, onde detêm uma invejável capilaridade, inalcançável pelos meios convencionais da administração federal.

Como no passado, esses “fantasmas” são inimigos da democracia, porque, no fundo, são egoístas, amam mais o poder do que fazer bem ao povo e ao Estado Brasileiro. Enquanto o povo brasileiro não despertar desse pesadelo político e exorcizar os “fantasmas de 1964” de nossa cena política, continuará um refém amedrontado, sujeito aos bruscos despertares de noites mal dormidas, a um descanso incompleto. E nessa condição, o cansaço terminará por prevalecer e cederá, de uma vez por todas, o espaço para a ascensão definitiva do autoritarismo.

* Advogado. Escritor. Professor Universitário. Membro da Seccional Vale do Aço do IAMG.
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