17 de julho, de 2021 | 11:02

O beijo e a eugenia nas relações de trabalho

Maria Inês Vasconcelos *

"A liberdade de se afeiçoar a alguém é plena, portanto, o trabalho, por óbvio não é imune ao afeto. Affectio ou afeto faz parte dos contratos, une pessoas, cria vínculos"

O assunto de hoje é beijo. Beijo de babá. É a vida da Cida, a babá demitida após beijar Dudu, num parquinho do prédio, no segundo sábado do mês de maio. A demissão foi em flagrante, em pleno beijo, com a patroa aos gritos. Dudu com três anos, chorando. Muita gente de olho na aberração.

Sem o intento de fazer nenhuma salvação escatológica da babá, mesmo porque não tenho esse poder, quero apenas fazer um resgate de Cida e de todas as outras “Cidas” punidas pelo mesmo delito angelical: um beijo.

Eu não tinha dúvida, os vestígios da escravidão literalmente abolida em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, insistem em demonstrar que há relações contaminadas por um preconceito esquizofrênico, o trabalho doméstico é um desses lugares.

Vou direto ao ponto, a babá pode beijar, sim. E também pode abraçar, dar banho, rezar junto, e "pôr na caminha". Tudo junto. Isso é normal. Moral. E abro aqui um parêntese: a moralidade é individual. A lei é geral.

Faço uma mudança no percurso. Explico, em virtude de alguns delírios que persistem no ser humano, pode-se confundir as coisas. A relação de trabalho é palco, sim de direitos e deveres e dentre esses direitos está o direito ao afeto. Ao lado das regras, como o salário mínimo, férias e 13º, do habitar o quartinho dos fundos, também mora o afeto.

E para quem não sabe eu explico: o afeto é um direito, ou melhor, uma liberdade assegurada na Constituição Brasileira. A liberdade de se afeiçoar a alguém é plena, portanto, o trabalho, por óbvio não é imune ao afeto. Affectio ou afeto faz parte dos contratos, une pessoas, cria vínculos.

Como é impossível impedir alguém de gostar ou se afeiçoar a outro, é também impossível impedir uma babá de gostar da criança que contratualmente está obrigada a cuidar. E se desse afeto surgir um beijo ou um abraço, não há qualquer espaço para se pensar em punir, muito pelo contrário, a não ser que queiramos classificar as babás como um ser humano periférico e desprovido de sentimentos, estaremos praticando o pior dos delitos. O julgamento é preconceituoso, desumano e eugênico. Justiça nenhuma, muito menos a do trabalho, chancelaria um ato desses.

As babás que em nossa ancestralidade foram amas de leite, representam hoje a salvação das mães que trabalharam fora e das que delegam ou terceirizam a criação dos filhos. Se a mãe atua junto, são no mínimo parceiras. A função de babá é abrangente.

Babás do século XXI ensinam deveres, levam ao médico, dão remédio, vão ao psicólogo e a até na reunião da Escola. Tem procuração com amplos poderes. Não são mais somente responsáveis por dar banho e amassar a banana. Suas tarefas acompanharam a evolução do mundo, inclusive, a tecnológica. Sabem controlar tempo de joguinhos e fazer tic toc. Muitas viajam para todo canto, inclusive, para o exterior, numa relação arrimada em entrega e plena confiança.

Voltando para o beijo, o que se pode dizer é que a babá não só pode cuidar, como pode legitimamente se afeiçoar às crianças, o que para algumas é algo extremamente gratificante e para outras mães, delirantes, motivo para raciocínios deturpados. Aliás, o ser humano é dual, ele tem mesmo uma pulsão para pensar o mal. E também para praticá-lo.

É sobre esse tipo de gente, essas mães que querem o melhor dos dois mundos, que querem uma babá- mãe, mas exigem a babá-robô, a quem eu me refiro. Esse desejo insano, hermético e sem timbre, esse nonsense de impedir um gesto de carinho, essa gente que castiga um beijo desses são insalváveis!

Cida beijou Dudu. O beijo coincide com o afeto. Nada diz respeito aos males do mundo, à falta de higiene ou zelo. Beijou porque adorava Dudu. Não fez nada demais, foi apenas mais uma dessas mulheres a quem devemos devotar admiração. Esse beijo foi um beijo de anjo num sábado eterno.

Tudo isso deixa-nos com a sensação de que entendemos o sentido da afeição e a impossibilidade de uma divisão entre o contratado e aquilo que é sentido. Divisão inexplicável. E para Cida, nossa babá, não há mais nada a dizer. Apenas, tão somente, um beijo meu. Sinto afeto por você!

* Advogada, pesquisadora, professora universitária e escritora

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Comentários

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Tião Aranha

17 de julho, 2021 | 14:33

“A questão é mais cultural. Tem um grande país aí que qualquer toque numa criança é respondido pela violência, pois entendem que a mesma está sendo agredida, bem diferente de preconceito ou eugenia.”

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