20 de abril, de 2021 | 14:30

Covid e a morte sem dignidade: a mistanásia

Sandra Franco *

“A pandemia apenas escancara o que se sabe há tempo: o Brasil está entre os países com os piores números no que se refere aos problemas sociais existentes”

A mistanásia é definida como uma modalidade de término de vida, como consequência da violação de direitos humanos, como o direito à saúde. Ocorre quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte prematura, miserável e evitável. É possível caracterizar essa condição como o oposto da eutanásia, que significa a morte tranquila e planejada para poupar um indivíduo do sofrimento causado por alguma enfermidade incurável, a qual no Brasil não é autorizada, mas legalizada em vários países.

Na seara da Bioética e do Biodireito, fala-se também sobre a distanásia, que é o adiamento da morte, quando, por exemplo, o médico ministra ao paciente todas as drogas disponíveis, bem como utiliza a tecnologia para prolongar a vida e/ou atrasar a morte, muitas vezes lhe propiciando sofrimento desnecessário. Também é conhecida como “obstinação terapêutica”. Já a ortotanásia é um meio termo entre a eutanásia e distanásia, por ser a morte natural com o mínimo de sofrimento, utilizando cuidados paliativos. Dá-se quando, o médico trata o paciente a fim de evitar-lhe sofrimentos; mas, em casos terminais, não utiliza artifícios tecnológicos para atrasar a morte do paciente.

Normalmente, a mistanásia atinge indivíduos excluídos do seio social que dependem das políticas públicas de saúde na garantia de sua dignidade. Embora a Constituição Federal garanta ao cidadão o direito à dignidade e à honra - além de explicitamente dispor sobre a obrigação de o Estado oferecer a assistência integral à saúde - na prática, a exclusão socioeconômica representa condições piores de habitação, educação e alimentação, o que por si já caracteriza que os excluídos são justamente aqueles que mais precisarão do sistema de saúde, embora sejam os que enfrentam as maiores dificuldades de acesso até para serem consultados, quanto mais nesse momento de pandemia.

Em 2020, quando do início da pandemia, um levantamento Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) demonstrou que o Brasil possuía 48.848 leitos de UTI, sendo 22,8 mil no SUS (Sistema Único de Saúde) e 23 mil na rede privada, ou seja, cerca de 20 leitos por 100 mil habitantes. Tal índice é considerado satisfatório e dentro dos padrões da Organização Mundial da Saúde, que recomenda de 10 a 30 camas de terapia intensiva para cada 100 mil.

Por que então estamos sofrendo tanto nesse momento com o absurdo número de mortes registradas e muitas delas pela falta de leito na UTI? A ineficiência do Estado no combate a pandemia vai além da falta de leitos, faltam oxigênio, equipamentos de proteção, medicamentos e equipes capacitadas para atender a pacientes graves que precisam de tratamento intensivo. Constantemente, tem-se publicado na mídia acerca da apuração de responsabilidade do governo pelo número de mortos.

O fenômeno da mistanásia não representa um abandono de paciente, mas sim uma consequência do colapso do sistema. A escolha não exime o profissional de oferecer ao paciente preterido de todos os cuidados no leito de enfermaria, mas uma chance de sobrevivência pode ser perdida pela ausência de cuidados intensivos.

É uma decisão drástica criada pela completa saturação dos recursos da UTI no país e do "gargalo" no atendimento à população. E, na maioria dos casos, apesar de parecer cruel, a análise do atendimento é feita não só pela ordem na fila, mas também pela chance de sobrevivência. Hoje é crescente número de pacientes mais jovens com quadros grave o que reflete num tempo maior de internação e, por fim, na escassez de vagas.

Garantir o acesso à saúde, como o contrário de doença, passa também por melhorar as condições de vida da população. A pandemia apenas escancara o que se sabe há tempo: o Brasil está entre os países com os piores números no que se refere aos problemas sociais existentes. Grande parte da responsabilidade desse cenário está no Estado que, pela ausência de políticas públicas, eterniza esses problemas e as desigualdades sociais. Diante de um quadro ainda mais complexo na saúde, a não observância de direitos humanos, garantidos na constituição, tem culminado em morte: a mistanásia.

* Consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados e diretora jurídica da ABCIS
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