23 de março, de 2021 | 16:15

Cesare Beccaria no século XXI

Hiltomar Martins Oliveira *

“As lições de Cesare Beccaria para o direito penal continuam vivas e de aplicação imediata aos conturbados momentos em que vivemos”

“Por vezes, pensa-se que nosso país caminha para um retrocesso em vários campos, quando se vê agudizar a crise do direito, crescer o desrespeito com o Poder Judiciário”

Há mais de dez anos, ouvi de um colega professor e juiz de direito que ele “odiava Beccaria e o seu livreto ‘Dos Delitos e das Penas”. No momento, fiquei tomado de espanto dada a explicação que ele me dava, pois, dentre outras, dizia “Beccaria foi um filósofo esnobe, aristocrata, que nunca teve de trabalhar para ganhar seu sustento e que via o mundo por um espelho que não era dele...Que, na vida real, o bandido tem que pagar caro e morrer na cadeia para não molestar mais os homens de bem ... Que o juiz tem de pesar a mão na hora de fixar a pena... Que a pena de morte bem que poderia ser implantada aqui no Brasil... Que a presunção de inocência foi uma invenção de filósofos desocupados... Que a Polícia, quando confrontada com bandidos, tem de atirar primeiro [para se defender] e deixar as perguntas para depois...”

Teci algumas considerações contrárias, mas todos nós estávamos tomados pela urgência de compromissos: tanto ele quanto eu estávamos já atrasados para o almoço e eu tinha audiência logo após. Então, despedimo-nos sob a promessa que retomaríamos o assunto assim que aparecesse a oportunidade.

Isso nunca não ocorreu, pois, logo após aquele encontro, ele foi removido para outra comarca.

O tempo passou. Mas, no fim do ano passado, comecei a ser tomado por inquietações jurídicas que acometem todo o cidadão que se preocupa com o rumo dos acontecimentos políticos e principalmente com as liberdades individuais sendo veladamente ameaçadas. Voltei, então, a reler o livro de Cesare Beccaria, “Dos Delitos e das Penas”, escrito há mais de 250 anos na Itália, numa excelente tradução comentada, lançada na Espanha.

Sempre inspirador, o livro de Beccaria trata-se de obra polêmica que provocou, naquela época, admiração pelos homens de ciência, mas, ao mesmo tempo, duras críticas e até perseguições ao autor por parte daqueles que se aferravam ao passado e negavam qualquer possibilidade de mudança no sistema penal europeu.

Beccaria, acima de tudo, foi um autor corajoso que denunciou o bárbaro sistema penal medieval, que predominava na Europa em pleno século XVIII, onde eram comuns o uso da tortura, a condenação sem provas, a prisão política, a pena de morte (por enforcamento, decapitação, desmembramento etc.).

Sobre esta última, Beccaria escreveu: “A pena de morte não se apoia, assim, em nenhum direito. É uma guerra declarada a um cidadão pela nação, que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil. (...)”. Para ele, a aplicação da pena deveria ser feita visando unicamente a provocar o temor nos homens para que não mais delinquissem, se desestimulassem de prosseguir na via criminosa tendo em vista o desequilíbrio entre a dor do cumprimento da pena e os benefícios da conduta contra a lei. Indiretamente, ele levantava a bandeira do resgate e da reeducação dos homens criminosos como imperativo para uma sociedade mais igual e menos injusta.

Mas, para tanto, a sociedade, por meio de seu corpo político, deveria ter leis equilibradas, justas, que se aplicassem a todos sem distinção. “Quereis prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defende-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las”, – pontificava o escritor italiano, quase profeticamente anunciando para os tempos atuais a crise nos sistemas penais mundiais que nos assola.

E continuava: “Não favoreçam elas nenhuma classe particular; protejam igualmente cada membro da sociedade; receie-as o cidadão e trema somente diante delas. O temor que as leis inspiram é salutar, o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes”.

Beccaria combateu tenazmente o uso da tortura pelos juízes sob todos os seus aspectos e foi um arauto da aplicação incondicional do princípio da presunção da inocência. “Eis uma proposição bem simples: ou o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou”.

“Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se é provável que um cidadão prefira segui-las a violá-las, o juiz que ordena a tortura expõe-se constantemente a atormentar inocentes”.

Assim, a tortura era vista por ele como um meio de condenar o inocente que não tivesse a fortaleza de resistir, física e mentalmente, às dores infligidas pelo carrasco na prisão; pois o culpado, na maioria das vezes, já devia ter levado em conta o cálculo do sofrimento a ser suportado por cometer o crime e teria muito mais reservas para resistir a todo tipo de violência que se lhe impusesse. Logo, suas chances de não confessar são infinitamente maiores do que o inocente levado ao calabouço, onde sofrerá tortura. “Assim, o inocente tem tudo o que perder, o culpado só pode ganhar”., pois, no fim, “Os homens são sempre os mesmos: veem as coisas presentes sem preocupar-se com as consequências. (...)”.

Ainda em relação à tortura, finalizando, lança à face de todos uma advertência admirável: a de que, entre os romanos, a tortura somente era admitida para os escravos, homens que não desfrutavam de direito algum na sociedade; e a de que nem as leis militares admitiram a tortura. Sirva isso de lição aos legisladores para aplicar mais humanidade no julgamento dos homens em sociedades que procuram viver em paz.

As lições de Cesare Beccaria para o direito penal continuam vivas, atuais, oportunas, e de aplicação imediata aos conturbados momentos em que vivemos quando, por vezes, pensa-se que nosso país caminha para um retrocesso em vários campos, quando se vê agudizar a crise do direito, crescer o desrespeito com o Poder Judiciário, e os sentimentos das pessoas ser manipulados em prol de interesses particulares que não comungam para o bem-estar geral.

E, pior, quando o bem maior do Estado de Direito Brasileiro, que se trata da segurança e da liberdade dos brasileiros, se vê constantemente fustigado por ataques midiáticos, em forma de verdadeiros enxames cibernéticos, para manter os corações reféns de sentimentos de ódio e de discriminação, que, de forma lenta e insidiosas, acabarão por rasgar o tecido social que nos mantém agasalhados na forma de sociedade de homens livres.

* Advogado. Escritor. Professor Universitário. Membro da Seccional Vale do Aço do IAMG
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Comentários

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Rodrigo Martins

24 de março, 2021 | 12:56

“Parabéns ao autor pela feliz abordagem.
Ombreando ao entendimento do Professor, penso que todo pretenso operador e já operador do direito que despreocupa ou simplesmente dá de ombros às questões afetas ao núcleo do Estado de Direito deve mudar de ramo imediatamente. É vergonhoso debruçar sobre obras que convalescem de tempos em tempos para ouvir um colega, como o juiz citado no texto, expelir tamanhas barbaridades.
Ainda sou jovem, mas já me sinto cansado da luta. Como disse Nelson Rodrigues "Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos."”

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