03 de março, de 2021 | 15:06

Gênero neutro e outras modas

João Paulo Xavier *

"O que importa hoje em todo esse ‘rolê’ é que precisamos nos atentar para as exclusões e os silenciamentos que ocorrem, os porquês e o que têm feito com que se perpetuem"

"Se devemos brigar por algum motivo, penso que seria mais útil devotarmos nossa energia à garantia da visibilização de causas sociais que têm impactado as vidas das pessoas"

Querides, amigues, prezades, candidates, alunes... possivelmente você já deve ter visto algumas dessas intervenções sendo aplicadas em e-mails, anúncios na internet ou sendo faladas por pessoas com a intenção de não especificar a quem se referiam: às pessoas do gênero masculino ou feminino. Vagando pela internet, encontrei um post que criticava essa tentativa de utilização de um gênero neutro. Para facilitar a compreensão, o que tem acontecido é que, devido aos entendimentos que vêm se ampliando com relação às subjetividades e às formas por meio das quais as pessoas têm manifestado as suas identidades, sejam elas, homo-hetero-bi-pan-trans-não binárias, tornou-se comum vermos a vogal "e" no fim de algumas palavras. Por que isso tem despertado a ira de alguns? Veja bem, o jeito que se deu no Brasil, para chamar a atenção para as disparidades e discriminações de gênero e a exclusão, principalmente, de pessoas LGBTQI+, foi usar esse "e" para dar visibilidade a esses sujeitos que, geralmente, não cabem nem se limitam ao padrão heteronormativo.

Essa forma de expressão tem sido compreendida por alguns linguistas, categoria em que me incluo, como uma neo-linguagem que aponta para a necessidade de uma política linguística de representação e inclusão social de pessoas não-binárias e, igualmente, cis-gêneras nas diversas esferas da vida social: educação, política, ciência, mundo do trabalho etc., e apontam para a necessidade de debates no eixo dos Direitos Humanos e, sobretudo, nos Estudos da Linguagem.

Por ser linguista, entendo que, gramaticalmente e do ponto de vista normativo, há outras questões que interferem na identificação do gênero das palavras. Por exemplo, os adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente, da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável... Terminar uma palavra com “e” não faz com que ela seja neutra. “A alface” termina em “e” e é feminino. “O elefante” termina em “e” e é masculino. Se o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos (A, O, As, Os) do que pelas vogais temáticas, o que nessa discussão realmente importa se esse "êzinho" não resolve? Para mim, a possibilidade de pensarmos e discutirmos esse assunto já vale a pena.

De maneira simples, diria que essa foi a maneira que, por hora, encontramos para abordar essa necessidade de visibilizar um debate muito mais profundo e que não tem recebido a atenção necessária em nossa sociedade. É ideal? Não sei, mas o fato disso despertar a atenção e a 'rebelião' de quem sempre esteve representadO nos espaços de poder já mostra que a demanda é real e legítima.

São vergonhosos os discursos que tentam desqualificar a luta de grupos que têm tentado se espremer para ter lugar sob sol dos trópicos que não é o mesmo para todes, neste país racializado e marcado pela discriminação e desigualdades de todas as naturezas.

Acredito que se queremos, de fato, abordar esse tema de maneira normativamente linguística, certamente, precisaremos analisar toda a conjectura da língua portuguesa.

Para mim, esse não é ponto central. O que importa hoje em todo esse ‘rolê’ é que precisamos nos atentar para as exclusões e os silenciamentos que ocorrem, os porquês e o que têm feito com que se perpetuem. Se devemos brigar por algum motivo, penso que seria mais útil devotarmos nossa energia à garantia da visibilização de causas sociais que têm impactado as vidas das pessoas.

No Brasil, foram assassinadas ao menos 868 travestis e transexuais nos últimos oito anos, dentre elas 124 só no ano de 2019, o que nos eleva ao topo da lista de países com mais registros de homicídios de pessoas transgêneras. Esse dado foi publicado pela ONG Transgender Europe (TGEu). Das páginas dos classificados nos jornais às telas dos computadores e celulares, toda essa violência contrasta o fato do Brasil ser o país que mais acessa pornografia transsexual no mundo.

Outra informação importante foi divulgada no Relatório da violência homofóbica no Brasil, no qual consta que a transfobia faz com que travestis e transexuais tenham como única opção de sobrevivência a prostituição de rua. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans recorrem a essa profissão por terem as portas do mercado de trabalho trancadas pelo preconceito.

Por fim, uma pesquisa divulgada pela Associação Brasileira de LGBT revela que 25% dos estudantes que não se declaram heterossexuais, no Brasil, já sofreram agressões físicas. Dentro do mesmo grupo entrevistado, 55% já foram verbalmente agredidos no ambiente escolar. Dentre todos os respondentes, 45% disseram que já se sentiram inseguros devido à sua identidade/expressão de gênero.

Esses dados tristes e reais indicam que temos muitas outras discussões para realizarmos e muito trabalho pela frente. Limitar o nosso debate a uma vogal ou ao uso ou não de uma neutralização de palavras realmente seria tentar fazer vistas grossas para tudo isso. Especialmente porque muitos transexuais que enfrentam toda essa violência na fase escolar não recebem o apoio de que precisam e, por isso, desistem dos estudos. 82% das mulheres trans e travestis abandonaram o ensino médio entre os 14 e os 18 anos, segundo a pesquisa realizada em 2017 pela RedeTrans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil) com ONGs. Memorize isto: devemos nos referir às pessoas da maneira como elas gostariam de ser tratadas ou chamadas, mas para isso precisamos enxergá-las primeiro.

* Doutor em Estudos Linguísticos – Pesquisador e Professor efetivo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) instagram: @nazareorientadora
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