02 de março, de 2021 | 13:52

Carolina Maria de Jesus: mulher, negra, favelada, catadora e doutora

Rodrigo Augusto Prando *

“A homenagem à Carolina Maria de Jesus é um bálsamo, especialmente, em nossa situação pandêmica, até porque a pandemia agudizou e desnudou nossa desigualdade”

Em homenagem póstuma, Carolina Maria de Jesus, autora do famoso livro Quarto de despejo, recebeu o título de Doutora Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Carolina Maria de Jesus morou na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, onde, hoje, está a Marginal Tietê. A vida de Carolina Maria era de catadora, tirava do lixo o pouco que tinha a fim de sustentar-se e à família. Gostava de escrever e, num diário, registrou o cotidiano da favela, numa dureza e desumanização que, da década de 1960 até os anos 2020, mantém, ainda, infelizmente, muitos de seus traços, ainda que a cidade e o país tenham mudado.

Tendo estudado apenas até o segundo ano do Primário, sua escrita é repleta de erros que, no conjunto, são mínimos, desprezíveis, se comparado à grandeza de sua visão de mundo. Li Quarto de despejo no início da adolescência e, em muitas atividades voluntárias no Escotismo, lembrava dos trechos do livro quando estava em favelas (hoje, comunidades) fazendo minhas "boas ações".

Mais velhos, ainda no Escotismo, meus amigos e eu, construíamos críticas ao assistencialismo que, então, praticávamos. Mas, de certa forma, esse viés imediato e assistencialista nos apresentava uma realidade que confirmava o que tinha lido de Maria Carolina.

Alguns dos trechos de seu escrito são socos desferidos em nossa cara. A fome, o trabalho degradante e a doença são personagens de seu diário. Em 15 de julho de 1955, registrou: "Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar".

Sobre as mulheres casadas que comentavam que Carolina Maria não tinha marido, ela escreve: "Elas tem [sic] marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede [sic] socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses". Em 19 de julho: "Cheguei em casa, fiz o almoço. Enquanto as panelas fervia [sic] eu escrevi um pouco. Dei almoço as crianças, e fui no [sic] Klabin catar papel [...]. Trabalhei apreensiva e agitada [...] Elas [sic] [mulheres que moram na favela] costuma esperar eu sair para vir no meu barraco expancar [sic] os meus filhos. Justamente quando eu não estou em casa. Quando as crianças estão sosinhas [sic] e não podem defender-se".

O livro - o diário de sua existência - é documento de riqueza sociológica inestimável. Riqueza sociológica e metodológica da pobreza material, mas também, da riqueza moral e da dignidade daquela mulher negra e favelada.

A Sociologia Crítica de Florestan Fernandes - ele próprio filho de uma lavadeira, sem pai e criança pobre - nos revela um país que precisa compreender sua história e sua estrutura social. Um Brasil que ganha vida na obra de Florestan e na de seu discípulo, José de Souza Martins, que, em sua Sociologia da Vida Cotidiana, traz à tona a vida do homem simples, dos que estão às margens, nas fímbrias de nossa sociedade. Carolina Maria nasceu em 1914 e faleceu, em 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória, por conta de uma asma que teve por toda a vida. Seria, hoje, considerada do grupo de risco, múltiplos riscos.

A homenagem à Carolina Maria de Jesus é um bálsamo, especialmente, em nossa situação pandêmica, até porque a pandemia agudizou e desnudou nossa desigualdade de renda, oportunidades, educacional, de saúde e territorial. "Quarto de despejo" foi muito lido, muito vendido e guindou sua autora à notoriedade. Hoje, por certo, Carolina Maria estaria atenta às "comunidades" e aos jovens com seus celulares, muitos, provavelmente, fazendo entregas por meio dos aplicativos, garantindo que possamos manter o distanciamento social e nosso home office. Dedico este artigo à Tânia, que, no Escotismo, me apresentou o "Quarto de despejo" e Carolina Maria de Jesus.

* Professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp
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