
11 de fevereiro, de 2021 | 15:40
Desespero Remoto Emergencial
João Paulo Xavier *
São 6h50, o som do alarme ricocheteia pelas paredes do quarto e quebra o silêncio do sono. Abro os olhos, lentamente, e me iço da cama. Arrasto os pés pelo tapete do chão e caminho em direção ao banheiro. A água morna do chuveiro desperta os sentidos ainda amortecidos pelo sono. 7h20, o bipe da cafeteira elétrica anuncia que é hora de quebrar o jejum.
O aroma do café me convida a me assentar junto à mesa da cozinha. Pão de forma, requeijão e o café preto sem açúcar. Encaro o relógio da cozinha, que impacientemente, tica a cada segundo me avisando que não posso me atrasar. Desdenho da pressa do tempo que exige em passar; moro a poucos quarteirões da escola. Não preciso correr.
Na sala dos professores não tem café, então, por que eu chegaria antes das 07h50? Tudo que preciso para começar o meu dia está dentro da minha pasta conferida, cuidadosamente, na noite anterior.
Diários de turma: check! Livros do professor: check! Provas corrigidas que serão comentadas: check! Pincel e apagador: check! Check! Caneca para economizar os copos descartáveis da sala dos professores: check!
Meu marido sempre diz que é uma bobagem levar uma caneca e que o problema do mundo é que se produz muito plástico o tempo todo e que tudo é de plástico e que o plástico vai acabar destruindo o planeta e mais um tanto de coisa em que, às 7h32 da manhã, eu não tenho muitas condições de me concentrar. Acabo meu café da manhã, corro os olhos pela geladeira: vejo um pedaço de queijo.
Humm, posso levá-lo e fazer um misto quente. Ah! esqueci a sanduicheira da sala dos professores quebrou, ano passado, e até hoje não temos outra. Vou acabar comprando uma com o meu dinheiro. Aff! Não é hora de pensar nisso. Pego uma maçã, na verdade duas. Um pedaço de queijo e dois pães de forma. Coloco tudo em uma vasilha com tampa e saio.
Às 7h46 cumprimento a Leda, na portaria, e os alunos que vem entrando junto comigo. Entre Hello!” e Good Morning” mesclo um eaí, beleza” e um bom dia, pessoas bonitas!”. Vou direto para a sala. 07:50, estou parado na porta dando good mornings”, Hi” e How are you, today?”.
Meus alunos entram sorrindo, sonolentos, com fones de ouvidos, distraídos em conversas, mexendo nos celulares (nessa hora escolho acreditar que estão desligando o aparelho, mas sei que na realidade, o máximo que estão fazendo é colocar o aparelho no silencioso.) Aguardo, cinco minutos. Sempre aguardo.
Às 7:55, inicio minha aula, dando um bom dia coletivo e comentando algo que li no jornal ou assisti na televisão na noite anterior e que considero que possa atrair a atenção da turma para mim, antes de entrarmos nos conteúdos acadêmicos.
Bom dia, pessoas bonitas! Vocês viram que tem uma pandemia se alastrando pela China. Parece muito contagiosa. Estão estudando do que se trata”. Os alunos ouvem com atenção, um ou outro comenta e escorregamos daí para os conteúdos da aula. São sete 7h30, o som do alarme chicoteia os meus ouvidos e interrompe o sono que demorou a me visitar na madrugada que passou.
Ao abrir os olhos, descubro que estava dormindo, mesmo tendo a sensação de que passei a noite inteira pensando em como vou fazer com as contas deste mês. A sensação de cansaço percorre todo o meu corpo que parece não conseguir se sustentar sozinho. Rolo da cama e caminho em direção ao despertador que, mais alto do que de costume, berra um ruído alienígena e irritante sobre a mesa do outro lado do quarto. Tem sido assim. Perco a hora se o despertador estiver ao meu lado.
Desligo e volto a hibernar. Arrasto os pés pelo tapete do chão e caminho em direção ao banheiro. Não tomo banho. Lavo o rosto com a água fria que racha os meus dedos. O choque térmico me acorda. Desde que o reservatório de água quente estragou, tenho tentado encontrar alguém para arrumá-lo, mas não tive sucesso até agora. De pijama, caminho até a cozinha.
Não tem pó, portanto, não terei café. Abro a geladeira e me dou conta que tenho vivido de iFood: pizza e marmitex entregues pelo restaurante ao lado da escola. Bato a porta da geladeira e subo para o quarto. Abro meu guarda-roupas e pego a camisa xadrez de sempre. Ajeito o cabelo e me assento de frente para o computador. 7:50 abro o Microsoft Teams e meus alunos entram na sala. Bom dia”, dizem.
Ou melhor, escrevem. Nessa aula da quarta-feira os alunos não gostam de ligar o microfone e a câmera nem pensar! Não os conheço, lamento silenciosamente. Talvez estejam dormindo e entraram apenas pela presença. Considero. Respondo os cumprimentos e falo olhando para a tela, por horas. Pelo menos foi o que pareceu. Na realidade, passaram-se apenas 6 minutos.
A aula que era capaz de dar por 50 minutos virou um recado sobre as atividades, links, sites, prazos e raríssimas resoluções de dúvidas. Os alunos não respondem. Talvez eles não se interessem ou, talvez, também estejam cansados. Eles estão cursando dezessete disciplinas, do ciclo básico e as matérias do curso técnico. Entendo. Realmente é pesado para qualquer um. Será que eles se interessam pela minha aula?
Eu não sei mais se eu mesmo me interesso. O governo nunca se interessou. Alguém aí se interessa? O silêncio guia os 44 minutos restantes da aula. Tem sido assim: um monólogo entediante. O Ensino Remoto Emergencial foi ofertado como uma possibilidade de retomar as aulas, mas o que temos experimentado são as dificuldades de uma modalidade de ensino à distância para a qual não estávamos preparadas. Longos silêncios, telas pretas, respostas lacônicas digitadas.
Parece briga de casal que ainda não descobriu que precisa se separar. Não quero me separar, vivemos coisas tão lindas! Projetos, planos, experiências... Nosso relacionamento, professor x aluno, sempre fora marcado pela interação, o abraço, o cuidado, a troca, o olhar e a escuta atenta, a linguagem corporal e o processamento coletivo da informação para a construção do conhecimento. Infelizmente, tudo isso foi cambiado por listas de exercícios, formulários eletrônicos, telas escuras e professores desamparados e desestimulados com a educação. Ouvi de uma professora que o desânimo com suas aulas está afetando a sua criatividade e eclipsando o desejo de continuar nessa área.
Uma outra amiga, professora do ensino infantil, reclamou das apostilas que tem que montar, corrigir, os vídeos que precisa gravar para os seus alunos que moram em uma invasão e que neste momento não têm o que comer: faço apostilas e exercícios, mas esses alunos estão precisando de outra coisa. Eles estão em uma situação de vulnerabilidade social tão grande e não há nada sendo feito por eles. Pelo menos aqui na escola, eles tinham a merenda e nosso acolhimento pela manhã. Agora, não têm nada. A prefeitura doou cestas básicas, mas uma mãe me disse que nem fogão ela tem na casa dela, lá na invasão. Não há como preparar nada.” Bebi cada gota desse amargo cálice de informação. Uma outra amiga confidenciou que tem se sentido profundamente deprimida e com vontade de chutar o balde.
Fiquei com receio de perguntar o que ela quis dizer com isso, então apenas a confortei dizendo que ela poderia ligar para mim a hora que quisesse para conversarmos, mesmo tendo sido eu a ligar para ela para pedir conforto. Às vezes, nós professores temos que levar o conforto quando mais precisamos. Guardei minha angústia para mim mesma. Posso ligar para uma outra amiga mais tarde. Tem sido essa a jornada para muitos de nós professores. Nem todos têm estruturas oferecidas pelas escolas para que suas atividades ocorram. Nem todos conseguem o engajamento de suas turmas nas atividades. Nem todos querem falar para uma tela vazia. Isso que temos feito, por mais que queiramos dar sentido e atribuir valor, não chega aos pés do que um dia fizemos em sala de aula.
Sentimos falta da sirene do recreio. Da correria pelos corredores. De chamar a atenção e pedir silêncio. Hoje, temos o silêncio e ele nos angustia e parece nos encarar de volta através do computador. Espiamos um abismo. Queremos a volta às aulas de forma presencial, mas antes queremos a vacina. Queremos a esperança de estar de volta à ativa, como dizem. Não tem sido fácil essa crise política, educacional, ambiental e digital. O número de professores emocionalmente adoecidos nesse período é assustador.
As drásticas mudanças impostas pela pandemia somadas ao alto nível de exigências e sobrecarga de trabalho, as frustrações diárias e as dificuldades técnicas que surgem durante o ensino remoto têm impactado o psicológico dos educadores brasileiros.
A revista NOVA ESCOLA divulgou os resultados de uma pesquisa intitulada A situação dos professores no Brasil durante a pandemia”, respondida por mais de mais de 8,1 mil professores e professoras da Educação Básica, isto é, do ensino fundamental e médio. Apenas 8% declararam se sentir ótimos ao comparar sua saúde emocional com o período antes da pandemia. 28% afirmaram se sentir péssimos ou ruins. A pesquisa pode ser conferida na íntegra por meio do link, no fim deste artigo.
As palavras mais utilizadas pelos professores para descrever o momento que estão enfrentando foram: ansiedade, cansaço, estresse, preocupação, insegurança, medo, cobrança e angústia. 1h55 da manhã, olho para a tela do computador. Estou terminando de escrever este artigo. Preciso dormir porque amanhã terei aula às 7h50. Torço para que consiga pegar no sono antes das 4h. Ontem, a última vez que olhei o relógio eram 3h37. Que bom que amanhã tem pó de café.
* Doutor em Estudos Linguísticos Pesquisador e Professor efetivo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) instagram: @nazareorientadora
Referências
*A pesquisa A situação dos professores no Brasil durante a pandemia foi realizada entre os dias 16 e 28 de maio de 2020 por meio de um questionário on-line disponível no site de NOVA ESCOLA. Ao todo, foram coletadas 9.557 respostas, sendo 8.121 (85,7%) delas de professores da Educação Básica. Link: https://cutt.ly/YkTuiU2.
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Júlia de Marins
11 de fevereiro, 2021 | 19:22? exatamente essa sensação, mesmo para quem trabalha em outras áreas.
A todas as pessoas que trabalham na educação, só podemos ter empatia, solidariedade e admiração, hoje mais do que nunca.
Que venha a vacina, a vida e o recreio novamente.”