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14 de janeiro, de 2021 | 15:03

A cor do poder não é preta

João Paulo Xavier *


A série ‘A Cor do Poder’ em exibição na Rede Globo é um desserviço ao que temos feito na Educação antirracista. De antemão, adianto que tenho plena convicção de que nunca devemos pedir desculpas por dizer a verdade, mas sinto muito se você ficou tristinho, tristinha com essa notícia. A cor do poder é branca, geralmente, gosta de dizer que é hétero e se orgulha de ter sobrenome de origem europeia.

Para entendermos melhor, temos que nos lembrar do fluxo que acompanha a nossa história. O início dos processos de colonização surge na Modernidade e é intensificado pela expansão Mercantilista, ou seja, a busca por novos produtos e mercados consumidores. Assim, com o fortalecimento do sistema capitalista, começava a se firmar um novo modelo econômico e social baseado na propriedade privada e na acumulação de capital, a partir do século XV, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna [após falência do sistema feudal e do surgimento de uma nova classe social - a famosa burguesia sobre quem tanto falamos]. Para justificar o que estavam prestes a fazer, a branquitude europeia se valeu da Ciência e da Educação para estabelecer uma posição de inferioridade para os negros e, assim, escravizá-los, feri-los, tomar suas terras, destruir seus sistemas sociais, sequestrar e traficar seus povos. Isso se chama Colonialismo, ou seja, a imposição de uma língua, cultura, padrões universalizantes do que é ser sujeito-gente.

Tudo isso ocorreu ancorado na educação e na pseudociência da época. Por isso, muitas desgraças ocorreram: padrões estéticos eurocêntricos, saberes (epistemologias) universalizantes e limitadas, ideologias (ideias) torpes que deixaram vítimas ao redor do mundo. Dentre esses ideais o mais cruel e o que permanece até hoje: RAÇA. A mãe do racismo que gestou a superioridade branca sobre todo o mundo. Surge, então, o negro – como uma das divisões sociais. Cinquenta e quatro países africanos com culturas, línguas, costumes, sistemas econômicos, políticos e sociais foram reduzidos a uma única coisa homogeneizante e capaz de permitir a dominação do branco. Quer saber qual é esta palavra: Negro. Sim!

Os 54 países se tornaram só isso, na visão branca: Negros. Esse negro é arrastado sobre as águas, em porões de navios, e levado para ser explorado mundo afora. Às custa disso, a Europa se firma como Primeiro Mundo, como potência, como um complexo de nações desenvolvidas que lucraram indiscriminadamente com os cadáveres estirados na África, Caribe, América do Sul e por aí vai. Esse colonialismo se estende até hoje e está entranhado em nosso sistema judiciário, político, econômico e educacional. O negro está às margens e, ao lutar contra esse sistema, ouve:

“Mimimi”, “Dívida histórica? Isso não existe”, “Racismo reverso” e outros vômitos colonialistas que tentam minimizar a história e garantir a manutenção dos privilégios de ser branco. Quais privilégios são esses? O privilégio de: permanecer vivo; de não ser caçado pela polícia; de ser e estar representado nos espaços de poder, de tomada de decisão e de controle do país; de ser visto como sujeito universal de beleza, educação e prosperidade. Imagine um astronauta tirando o capacete na lua. Acho pouco provável que você tenha imaginado um homem negro. Menos ainda uma mulher negra. Branco só existe porque tem privilégios. Sim. Os privilégios fazem o branco.

Semelhantemente, as discriminações fazem o negro. Considerando que não há quaisquer diferenças biológicas entre os seres humanos, branco e preto são construções sociais que são reforçadas política, econômica e educacionalmente. Preencher esse imaginário coletivo do que é lugar de branco e o que é lugar de negro são os mais violentos resquícios do colonialismo e seu cheiro podre que permanece no ar: a colonialidade. O que isso tem a ver com a série “A Cor do Poder”? Tudo. Por quê? Quando invertemos o processo de colonização que foi inaugurado, perpetuado e, ainda hoje, é garantido pela branquitude, concordamos em dizer que não havia escolha para o que foi feito contra nós.

Inconscientemente, dizemos que: se os africanos tivessem decidido sair de seus países para invadir outros continentes para roubar, saquear, estuprar e traficar, eles fariam o que os europeus fizeram, ou seja, agiriam com o mesmo nível de perversidade e ganância. Interessantemente, a filosofia Africana - surgida antes da filosofia grega - assim mesmo foi descartada na construção do pensamento ocidental. Se pensarmos a colonização não como a descoberta da América ou África, mas como um ataque aos sistemas políticos e soberania dos países africanos e sul-americanos, teremos um outro olhar. Pense, o Brasil não foi descoberto. Ele foi invadido, saqueado e destruído. Portugal se estabelece como uma nação desenvolvida, enquanto aqui amargamos todos os tipos de crises econômicas e políticas.

O mesmo ocorre com os outros países que foram invadidos pelos europeus. Embora pareça que ‘A cor do poder’ seja algo positivo, ela é uma série profundamente racista e perigosamente pensada para blindar a branquitude com relação ao desenvolvimento ‘mínimo’ de empatia com relação ao racismo. Empatia, sei perfeitamente, que não resolve muita coisa, uma vez que o racismo está estabelecido na estrutura sócio-política brasileira, mas pelo menos evita algumas falas que inflam ações individuais de racismo, por exemplo: ‘racismo é mimimi’, ‘racismo reverso’ e ‘cota é esmola’, entre outras ignorâncias e crimes. Entendo que o desejo de nos ver no poder, ocupando posições de influência e tomada de decisão é legítimo e transcendental, no entanto, da maneira que está representado na série, ele cria um problema ainda maior para o povo negro, pois da mesma forma que desperta um desejo de estarmos no poder, o grupo que domina e que, de fato, está no poder hoje, isto é, a branquitude, sente-se inferiorizada.

A empatia que vai ser despertada não é uma conscientização de quão terrível é a colonialidade que ainda resiste firme sobre nós. A empatia que vai ser gerada é para que brancos sintam compaixão pelos seus camaradas-brancos que estão sendo inferiorizados na série. O orgulho ferido e a revolta que sentimos quando vemos uma negra sendo arrastada pela polícia, uma criança preta sendo baleada dentro de casa, a tristeza de ver o filho de uma mulher preta morrendo por displicência da patroa branca e loira que saiu impune dessa situação, a sensação sufocante de impotência quando lemos que um homem negro foi assassinado por seguranças do Carrefour e cujas últimas palavras, também foram, ‘não consigo respirar’, a empatia que você homem e mulher negra sentem ao ser lembrados desses casos é a mesma empatia que a branquitude vai ter quando se ver representada não como os detentores do poder, mas como os subalternos.

Entendeu? Viu como isso amplia as tensões raciais? Racismo não se resolve com uma série, filme ou livro que ilustram o negro em uma possível situação de poder fictícia, como fez Monteiro Lobato no livro “O presidente negro”, de 1926, considerado uma distopia muito forte para a época e recusado por editoras americanas. Racismo se resolve com uma política educacional que vai ensinar as relações sociais e que vai valorizar as epistemologias negras também e não apenas os saberes produzidos por brancos e transmitidos como universalizantes. Racismo vai ser resolvido com o combate à desigualdade social. A transferência de renda. Concedendo crédito às pessoas negras. Aplicando a tributação adequada das grandes fortunas. Garantindo políticas públicas que protejam as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social.

Revendo o sistema carcerário e de justiça que condenam pessoas negras indiscriminadamente e, muitas vezes, injustamente. Garantindo o acesso de pessoas negras à educação e mecanismos que possibilitem a permanência delas na escola e/na universidade. Em ações que vão mostrar o negro não como subalterno, suspeito e incapaz, mas como ser humano e digno de respeito. Isto ainda é deficitário e insipiente no Brasil. A cor do poder é branca. Ou melhor, em um país subdesenvolvido e marcado pela mistura racial, a cor do poder se acha branca até conhecer a branquitude Norte Americana ou Europeia. Diante dela, a cor do poder, no Brasil, se vê atacada pela patologia do branco que é, segundo Guerreiro Ramos, o pavor de se ver associado ao negro que por ele tanto é discriminado.

Por isso, percebo que essa série presta um terrível desserviço a todos nós. A cor do poder é branca igual à cor do racismo. Sugiro algumas literaturas que podem ampliar a sua consciência com relação a tudo isso: Racismo Estético: decolonizando os corpo negros – autor: João Paulo Xavier; Racismo Estrutural – autor: Silvio de Almeida; Tornar-se Negro – autora: Neusa Santos Souza; Pequeno Manual antirracista – autora: Djamila Ribeiro; Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico - Joaze Bernardino-Costa. Esses livros trazem boas reflexões sobre a temática. Deseja assistir algo, edificante intelectualmente e que vai te entreter e contribuir para a construção de um imaginário saudável e justo com relação às pessoas negras? Assista ao filme musical e álbum visual de 2020, Black is King, dirigido, escrito e com produção executiva da cantora americana Beyoncé– disponível na Netflix.

O filme Pantera Negra é um outro exemplo de entretenimento de boa qualidade. Nessas obras, os negros e as negras são reconhecidos por sua beleza, ancestralidade, inteligência e não há exploração, escravização, humilhação ou subalternização de quaisquer pessoas, mesmo porque a história já nos mostrou que o racismo é tecnologia de poder, controle e dominação inventada e, cada vezes mais, aperfeiçoada e sutilmente difundida pelos brancos.

* Antirracista, negro. Doutor em Estudos de Linguagens. Pesquisador e Professor do CEFET-MG – [email protected]
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Comentários

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Antônio Lázaro Alves dos Santosmuito

16 de janeiro, 2021 | 16:49

“Parabéns! Bom esse texto. Perfeito !”

Flavio Alexandre

15 de janeiro, 2021 | 13:03

“Parabéns. Sua resenha é ótima. E sua linha de pensamento corre paralela a minha. Infelizmente nós temos um longo caminho ainda pela frente. Um dia (quem sabe?), meus netos ou bisnetos possam transitar nas ruas sem o fantasma do preconceito interferindo em suas vidas. Um abraço!”

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