13 de janeiro, de 2021 | 13:40

O silêncio mata

João Paulo Xavier *

?São tantos os exemplos de como temos sido agredidos, diariamente, mas não se ouve nada além do silêncio retumbante??São tantos os exemplos de como temos sido agredidos, diariamente, mas não se ouve nada além do silêncio retumbante?

Cresci ouvindo minha mãe contar que quando ela era criança e fazia algo que meus avós reprovavam, não precisava de eles dizerem quaisquer coisas. Pelo olhar ela já entendia as chamadas de atenção. Um olhar e um silêncio que transmitiam todo o sentimento, informação, exortação. Um silêncio que falava pelos olhos. Há vários tipos de silêncio e, hoje, quero falar de um bem específico. O silêncio diante de situações erradas.

Sou um observador da sociedade e gosto muito de prestar atenção às reações das pessoas quando algo grave acontece. Diariamente, vemos nas páginas dos jornais e nos noticiários relatos de assuntos que precisam ser falados, discutidos, confrontados e questionados. Casos de racismo, discriminações, desigualdades e injustiças são lidos e escutados com um silêncio que tem me assustado profundamente. Como podemos nos manter calados ao testemunharmos o descaso do poder público com o caos urbanístico em que vivemos?

Estradas e rodovias mal iluminadas e sinalizadas convidam aos acidentes que nos horrorizam. Professores e estudantes sem as devidas condições de ensinar e aprender em escolas desamparadas pelo Estado. Pessoas negras sendo empurradas para as margens da sociedade por meio de discriminações diretas e indiretas vindas de todos os lados: do governo e de outros sujeitos. Diante desse caos da racialização não vemos nada além de posts nas redes sociais digitais e fogos de palha que podem até queimar uns poucos mercadinhos, mas que no fim das contas pouco resolvem a situação institucionalizada estruturalmente e cravada em nossa história. Há outras agressões para as quais, também, fazemos silêncio.

Um país campeão em produção de cana de açúcar, mas cujo preço do combustível (Etanol) é o mais caro da América do Sul. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de soja e, aqui, o litro de óleo tem chegado aos assustadores R$9. Vemos tudo isso e aguardamos apáticos, em silêncio, a próxima promoção para ver o que vai ser possível comprar nos supermercados.

Segundo o Rabobank e USDA, o Brasil é o segundo maior produtor de carne bovina do mundo; a estimativa de crescimento para este setor é de 10,5 milhões de toneladas em 2021, mas os preços estão terrivelmente impraticáveis para a população. Pegamos a senha e entramos nas filas do açougue, silenciosamente, fazendo os cálculos do que deixaremos de levar se comprarmos um bife.

Na região do Vale do Aço, a tarifa relativa ao serviço de tratamento do esgoto - em Timóteo e Coronel Fabriciano - passou a equivaler a 97,50% do valor pago pelo consumo de água, isto é, se você gastou R$100 em água, pagará R$97,50 de taxa de esgoto – totalizando R$197,50. Lemos em silêncio a conta de água enquanto pensamos como podemos diminuir ainda mais o banho que tomamos ou analisamos se foi realmente uma boa ideia ter comprado uma samambaia que precisa de um pouquinho mais de água, em tempos de calor. Não nos damos conta da situação pavorosa em que vivemos e pior ainda: não dizemos nada.

Nossa fé é desencorajada ao ouvirmos sobre os escândalos relacionados às instâncias religiosas, mas o nosso silêncio é sepulcral e impera entre os fiéis que não cobram explicações e nem posicionamentos de suas lideranças. Assistimos e, pelo que entendo, concordamos acriticamente com tudo isso. São tantos os exemplos de como temos sido agredidos, diariamente, mas não se ouve nada além do silêncio retumbante, conivente e, muitas vezes, criminoso. Sinto um profundo incômodo quando vejo que somos vítimas de más escolhas coletivas que impactam de maneira brutal as vidas de todas nós, principalmente no âmbito sócio-político. Esse silêncio tem um preço muito alto e o pagamento vem sendo debitado às custas das vidas dos mais pobres.

Em uma sociedade que possui 1% da população detentora de 49% de toda a riqueza familiar do país, algo mais ou menos em torno de US$ 3,5 trilhões de dólares, somos todos pobres, mas há um contingente que está abaixo dessa linha de pobreza. Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, teremos mais de 20 milhões de pessoas vivendo em condições deploráveis de subsistências e desigualdade em 2021.

Diante disso tudo, fazemos um uníssono e longo silêncio. Está na hora de rompermos a mordaça das nossas bocas. Precisamos cobrar os nossos vereadores para que trabalhem e legislem a nosso favor. Precisamos escrever para as prefeituras e exigir o recapeamento e asfaltamento de nossas ruas, a canalização de nossos esgotos o suporte para nossas escolas. Precisamos exigir que a polícia nos proteja ao invés de nos matar, assediar, intimidar e ferir o nosso direito à vida, à cidade, a ir e vir. Esse silenciamento tem nos arrastado para o silêncio eterno e isso será irremediável.

Não é normal vermos jovens sem perspectivas de um futuro melhor. Escutei uma história tão triste e que, infelizmente, me pegou desprevenido. Uma adolescente de 14 anos está se prostituindo nas avenidas de Coronel Fabriciano. Seria brutal pensarmos que é uma escolha dela estar ali. Será mesmo que uma garota enxerga outras possibilidades para sobreviver quando até a merenda da escola – que era a refeição mais importante de seu dia a dia – foi cortada devido ao recesso causado pela pandemia? Ouvi isso de sua mãe – que me parou na porta do supermercado e relatou que está desempregada e que não conseguira sequer sacar uma única parcela do auxílio emergencial do governo.

A mensagem: “em análise” segue, desde maio, inconclusiva. Segurei no colo, o filho de dois anos dela, enquanto o meu silêncio escorreu molhado pelos olhos. A filha evitou me encarar. Torço para que um dia essas feridas e experiências sejam saradas e o trauma superado. Gravíssimos problemas sociais. Não tenho visto uma mobilização com relação a nenhuma dessas situações. Esse julgo tem sido aceito em silêncio e isso, como disse, tem saído caro. Não é fácil escrever um texto como este, mas é necessário informar e convocar a população à reflexão, à fala e à ação.

* Mestre e Doutor em Linguística Aplicada. Pesquisador e professor do CEFET-MG – Instagram: @NazareOrientadora
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