01 de dezembro, de 2020 | 15:00

Senta que lá vem história!

João Xavier *


Cresci, durante os anos 1990, em uma família onde os livros não eram tão presentes como, hoje, desejo que tivessem sido. No entanto, as histórias sempre estiveram conosco de maneira oral e passadas com, o que hoje entendo ser, a multimodalidade.

Quer fossem toalhas que viravam cabeleiras ou colheres de pau que se metamorfoseavam em espadas, lanças, estacas, tudo dependia do que se tratavam os conteúdos. Tia Preta, irmã número 3 da minha mãe, era especialista em causos de terror que alertavam para o que deveria ser evitado durante períodos como a quaresma, noites de lua cheia ou outras datas como o dia dos finados.

Tia Cleide, com suas veias artísticas e histriônicas, inventava monstros e “doidos” que divertiam e arrancavam gargalhadas súbitas. As histórias do meu avô eram sempre contadas de cócoras, encostado contra a parede, com o chapéu no joelho enquanto enrolava algo cuja fumaça embaçava meus olhos e trazia sobre aquelas histórias um ar místico e secreto.

Confesso que não entendia muitas palavras usadas por ele e, embora tivesse uma mente criativa e fértil, muitas vezes não conseguia conceber aqueles personagens mitológicos, folclóricos e que foram construídos a partir de uma rede de contos e recontos que, espero um dia repassar ao meu rebento. Fossem ao anoitecer ou nas tardes após a chaleira apitar, sempre havia uma história para deixar as crianças entretidas, curiosas ou convencidas a obedecer. “Olha! Olha!

Cuidado com a Paranêia, João Paulo!” Dizia, Tia Cleide. “Já te falei que quem deixa o chinelo virado, o Galoupeiro vem e busca pelo pé!” Alertava Tia Preta. Com a alfabetização, as letras atraíram os meus olhos e me possibilitaram contato com outros tipos de vivências, culturas e saberes.

Na adolescência, meu primeiro romance policial, ainda é o meu favorito; por ser tão bem-humorado e preciso: Martini Seco, de Fernando Sabino. Como desejei crescer e provar um martini seco com azeitona. Quando finalmente, provei descobri que no livro o gosto era infinitamente melhor. Até os 13 anos, a única mulher que conhecia era minha mãe, mas José de Alencar me apresentou Aurélia! Quanta força feminina em meio a uma sociedade tão sexista, pautada em aparências e marcada por contradições.

O sarcasmo de Machado de Assis me fez questionar, algo que continua sendo a dúvida da literatura, “traiu ou não traiu?” À época, não tinha uma opinião sobre o ocorrido. Hoje, tenho orgulho em dizer que: espero que sim. Por que não? Bentinho que supere! Eu já superei, via psicanálise. Outros textos, crônicas de Rubem Alves, contos e poesia sempre me levaram a relembrar a importância das histórias e como somos afetados pelo que carregam.

Semana passada, foram anunciados os vencedores do 62º Prêmio Jabuti. Li vários dos livros que estavam entre os finalistas anunciados algumas semanas antes. Dentre os vencedores, tinha a esperança de que um livro fosse galardoado esse reconhecimento: o romance Torto Arado, do escritor baiano Itamar Vieira Junior.

Torto Arado relata a história de algumas famílias, baseadas na cidade de Águas Negras, que trabalhavam em regime de colonato, ou seja, moravam em casebres construídos com barro e madeira, dentro dos limites das fazendas. Ali, aravam a terra e as lavouras e recebiam em troca uma parte da colheita. Geralmente, havia um mercadinho -dos próprios fazendeiros- onde poderiam comprar alguns mantimentos ou produtos, a preços exorbitantes, e o valor seria descontado da produção dos lavradores. Assim, as vítimas daquele sistema excludente pós-colonial (depois da abolição da escravidão em 1889) jamais liquidavam suas dívidas e continuavam dependendo dos fazendeiros e trabalhando para enriquecê-los enquanto viviam à mingua as misérias de uma sistema injusto.

A história apresenta o núcleo familiar de uma dessas famílias. Nos detalhes entalhados por todo o texto, nós da região interiorana de Minas Gerais podemos reconhecer as lendas, as crenças e os aspectos tão íntimos de nossa cultura brasileira. O silêncio inquieto da menina Belonísia. O olhar curioso e a coragem de Bibiana. A fé de Zé do Chapéu Grande e o alívio que suas rezas e o seu conhecimento ontológico acerca da natureza e do universo ao seu redor traziam aos demais conterrâneos. A fé explícita nos encontros e a beleza de um povo negro que resiste à seca, às cheias, às atrocidades e à ganância de serem escravizados pelo egoísmo e a falta de compaixão.

Ao terminar o livro, meu olhar como Doutor em Estudos de Linguagens percebia como a narrativa foi construída de forma a relatar, de maneira sensível e simples, mas longe de simplista, um romance que em cada detalhe justifica a premiação recebida. Por outro lado, como neto de Seu José Francisco Xavier, ficou claro que aquela história poderia ter sido muito bem contada por meu avô. Reconheço aquelas vivências, aqueles detalhes, a força daquelas pessoas negras.

Ler Torto Arado é ler a história da minha própria família. Descendente de pessoas que foram injustamente escravizadas na cidade de Peçanha, aqui em Minas Gerais. Buscando uma vida melhor, alguns fugiram para o Rio de Janeiro, outros para Belo Horizonte, como uma das personagens do livro. Penso que Torto Arado é um livro necessário e que evidencia algo no qual acredito há muito tempo. Há histórias que precisam ser contadas e recontadas.

Registros do tempo, da cultura e das marcas profundas da injustiça social em nossa sociedade. Entender essas histórias e reconhecê-las como legítimas integram um conjunto de ações que precisam ser feitas para o combate à ignorância e à criminalidade do racismo. Por esses motivos, recomendo a leitura de Torto Arado e me envaideço por ser parte de um povo que produz literatura de alta qualidade, com uma linguagem rica e marcadamente brasileira. Não é uma leitura difícil. É prazerosa e passa rápido, como todos os bons momentos que merecem ser vividos.
. Referências: Torto Arado, Editora: Todavia

* Mestre e Doutor em Linguística Aplicada e Professor do Cefet-MG – Insta: @NazareOrientadora
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Comentários

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Tião Aranha

01 de dezembro, 2020 | 20:20

“O papel do artista é falar pela sociedade. Somente ele percebe que as pessoas mudaram, e com ela os seus valores morais, éticos e até intelectuais. Hoje ninguém tem tempo pra ninguém - nem pra si mesmo. Tá na hora de tirar umas férias. (Brincadeira).”

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