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25 de novembro, de 2020 | 15:57

Sim. É arte negra!

João Paulo Xavier *

“A perseguição ao mural de Criola é uma demonstração aberta da intolerância estética e do desejo de apagar a memória e a presença das expressões artísticas de pessoas negras na capital mineira”

Uma situação perturbadora tem estampado os jornais mineiros. A perseguição a um mural que estampa um dos prédios da capital mineira, produzido pela artista mineira conhecida internacionalmente como Criola. A obra se chama “Híbrida Ancestral - Guardiã Brasileira” e referência em sua construção imagética as estéticas negra e indígena, a ancestralidade afrodiaspórica, o poder feminino de conceber a vida e a valorização de símbolos de uma população sempre estigmatizada na construção da identidade brasileira. Esses elementos representam a quebra de diversos paradigmas socais, como a street art que é um movimento marginalizado ao qual são atribuídas injustas conotações negativas por resgatar signos identitários de grupos sociais historicamente discriminados no Brasil. Para entendermos essa situação, é necessário saber o porquê a justificativa para apagar o mural é racista, ou seja, criminosa.

As discussões sobre o que é o belo são antigas. Platão (428 a.C.-347 a.C.) filósofo grego, considerado um dos principais pensadores de sua época, já discutia as relações entre a beleza e natureza humana. Platão entendia que aquilo que é Belo estava pautado na noção de perfeição e de verdade, ou seja, a beleza se encontrava no mundo das ideias e não diretamente relacionado a algo concreto ou que poderia ser apontado fisicamente. Assim, o Belo não poderia ser dissociado do homem, uma vez que se constituiria uma construção idealizada do ser humano. Esse conceito foi discutido por meio de outras perspectivas e aprimorado posteriormente por outros pensadores, como Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Kant e Hegel, para citar alguns. Desde o belo como um atributo divino e adaptado aos ideais religiosos até a construção coletiva de valores empíricos e teóricos de uma coletividade. Esta última dialogando contemporaneamente com a construção cultural e social de um dado contexto. Paralelamente a tudo isso, existem valores sociais que nos são impostos por meio das construções hierárquicas e as relações de poder e dominação social e econômicas vigentes na sociedade, e que se afirmam em uma escala ascendente entre quem determina os valores estéticos vigentes e a grande massa que os consomem.

Híbrida astral (Guardia brasileira). A autora, Criola, explica: ''Ancorada na matriz dos povos originários e do povo preto que se interconectam sustentando uma espiritualidade verdadeiramente brasileira, emerge em meio a cidade a materialização das híbridas astrais''Híbrida astral (Guardia brasileira). A autora, Criola, explica: ''Ancorada na matriz dos povos originários e do povo preto que se interconectam sustentando uma espiritualidade verdadeiramente brasileira, emerge em meio a cidade a materialização das híbridas astrais''
A organização urbanística das cidades e os seus monumentos são resultados da íntima correlação desses interesses, pois nesses espaços as diversidades de expressões subjetivas e estéticas dos sujeitos são apresentadas, bem como os ideários de beleza e das culturas dos povos que ali habitam.

A maioria dos monumentos patrimonializados nas grandes capitais reforçam ideais de poder pautados nos estilismos eurocentrados, admirados e valorizados pela branquitude. Comumente, reproduzidos como forma de expressar a sua liberdade para a criação estética, em detrimento da rejeição das manifestações artísticas dos outros atores sociais: povos indígenas, ribeirinhos, sertanejos e quilombolas, por exemplo.

Refletir sobre como as percepções estéticas nascem e operam em nossa sociedade é determinante para questionarmos se uma obra de arte deveria ser destruída devido ao entendimento nublado e enviesado do que seria ou não belo, em que a argumentação apresentada se baseou na expressão “não é uma simples pintura, é uma decoração de gosto duvidoso” – trecho do processo em trâmite judicial.

O mural de Criola questiona o patriarcado assente em nossa sociedade, ao passo que constrói imaginários outros de existência de corpos não brancos que transitam pelos espaços urbanos, evidenciando a cidade enquanto território em disputa não apenas de narrativas, mas de permanência, resistência e re-existências.

Diante disso, é impossível abafar meus questionamentos, cristalinamente, retóricos: a motivação por trás da contestação do valor artístico da obra se baseia em algo além do Racismo Estético? A quem a obra ofereceria risco no contexto branco-patriarcal resultante do carrego colonial?

A perseguição ao mural de Criola é uma demonstração aberta da intolerância estética e do desejo de apagar a memória e a presença das expressões artísticas de pessoas negras na capital mineira. Por que refletir isso aqui no Vale do Aço? Não se trata de um apagamento localizado, mas de agressões contínuas que não cessam de se reescreverem em contextos variados e à égide de discursos que negam o racismo no Brasil. Referências: @ara.urb - Acesso 24 de Nov. 2020 / Racismo Estético - Decolonizando os corpos negros - Amazon - 2020.

* Mestre em Estudos de linguagens pela UFMG e Doutor em Estudos de Linguagens pelo Cefet-MG onde leciona. É autor do livro: Racismo Estético: Decolonizando os corpos negros
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Comentários

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Tião Aranha

01 de dezembro, 2020 | 13:39

“Só vai conhece a cultura dum povo se tu conheces o seu patrimônio histórico e cultural. Da Fé, Caridade e Esperança, esta última é a mais importante, pois nela se concentra a possibilidade de melhoria dum povo.”

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