16 de junho, de 2020 | 16:15

Dona Emília quer um basta

Guilherme de Castro Resende *

Notícias recentes mostram que o nível de desemprego atingiu patamares absurdos, tendo recordes nos pedidos de seguro-desemprego em maio. O problema é mundial, pois o índice de desempregados deve terminar pior do que a crise anterior, a de 2008. Especificamente quanto ao Brasil, a Fundação Getúlio Vargas prevê algo em torno de 14,9%.

O cenário de crise econômica é devido à pandemia do coronavírus, e não em razão do isolamento social. Mesmo assim, algumas pessoas não têm a opção de escolher se isolarem, pois dependem de cada centavo para sobreviverem com um mínimo de decência. A falta de apoio governamental e particular somente as deixa com uma escolha de Sofia. Por isso, a informação de que um terço das famílias das classes A e B tenha solicitado o auxílio emergencial de R$ 600 nos últimos meses choca. A nossa elite está idiota, no sentido político da palavra, de não se importar com o bem coletivo, mas somente com o próprio umbigo.

A desigualdade é tamanha que uma das primeiras mortes no Rio de Janeiro atingiu uma empregada doméstica, que pegara o vírus por meio de seus patrões recém-advindos da Itália. Recentemente uma cliente nos procurou em razão de uma estafa doméstica. Emília, funcionária da casa há mais de duas décadas, já não aguentava a exploração do proletariado. Claro que essas não foram as suas palavras, mas procurei ouvir bem o que ela tinha a dizer. Ela simplesmente se angustiava com a bolha da classe média em que trabalhava, na qual deixava a todos alienados. Se você não percebe a sua bolha, felicite-se, pois é um privilegiado de nascença.

A casa dos patrões de Emília é uma bolha. A sua experiência demonstra uma resposta empírica para o nível de desigualdade em que nos encontramos. Os habitantes daquele lar não percebem o contrassenso ético em relação a seu funcionário. Não é uma questão de maldade – pode até ser -, a miopia não é uma falha de caráter, mas sim uma doença, que pode ser retificada.

O estopim de Emília foi a filha mais velha dos patrões. Moça nova, casada, “pet friendly”; ela deixou a cadela na casa dos pais para ir a uma festa de aniversário, o que por si só já é uma ameaça indireta a todos a sua volta, já que o momento é de pandemia. Voltemos ao cachorro. Este, fora de seu hábitat, não encontrou o seu local de necessidades. Fez ali mesmo na sala um cocô digno dos maiores da raça. Os donos do apartamento logo perceberam o cheiro e reclamaram efusivamente.

Acharam ruim das fezes para quem? Para a cadela? Não teria surtido efeito, mesmo sendo alienados, sabem que a cadela não entenderia. Pra dona da cadela e, portanto, a filha deles? Pelo número de visitas da cachorra ao apartamento, já se pode entender que esta opção está fora de cogitação. A filha apelaria para a falta de “bom senso” e cooperação dos pais em relação ao cãozinho. O que sobra? Os empregados, por óbvio. Os empregados da casa são pagos para a deixarem limpa, então que recolham o cocô; que coloquem comida e água para os cachorros. Se, ao final do dia, não conseguem limpar ou passar ou cozinhar de forma expediente, como os senhores desejam, eles estão indolentes ou não trabalham da mesma forma, precisando se aposentar ou serem advertidos. Arruma-se outra, afinal.

Eis um exemplo pueril de autoritarismo cotidiano da classe abastada brasileira, tradicional de casa grande e senzala, quando o empregado deve fazer tudo para o patrão, já que são pagas conforme a lei e o mercado. Compra-se um cão para a filha, mas quem é o dono do pet? A filha vai passar a limpar e a cuidar do animal ou somente o carinho fica por sua conta e o restante para os empregados?

Essa lógica é exportada ainda. Construtoras portuguesas constroem imóveis com quarto de empregada para agradar a brasileiros. São resquícios de uma longa tradição de desigualdade social que só piora se a parcela da população for de cor preta ou parda, segundo a síntese dos indicadores sociais do IBGE. Emília, perto de se aposentar, já não aguenta pequenas humilhações do dia a dia. O filósofo Michael Sandel, professor em Harvard, afirma em seu livro “A Tirania do Mérito” que os bem-sucedidos acreditam que são os únicos responsáveis por seu sucesso; por isso, são tão difíceis de entenderem conceitos básicos de cidadania e de responsabilidade para com a comunidade.

Doutor – ela continua -, eles não se levantam para levar o próprio prato em que comeram; não irão lavá-los, posto que seja minha função, mas não podem me trazer os benditos pratos e talheres. Dona Emília me faz pensar em como tratamos nossos funcionários, como pessoas ou como objetos de nosso poder. Dona Emília quer um basta. Já passou da hora de pretendermos o mesmo para a nossa história.

* Advogado do escritório Jayme Rezende Advogados Associados
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Comentários

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Elimar Aparecida de Castro Medeiros

16 de junho, 2020 | 18:09

“Parabéns! É necessário que mais artigos assim venham nos fazer refletir que sociedade queremos para nós, já que temos que nos conscientizar que não dá para vivermos de resquícios do passado.”

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