CADERNO IPATINGA 2024

16 de março, de 2020 | 16:20

O pânico se instala

Gaudêncio Torquato *

A vida é um eterno recomeço. Fosse escolher a lenda que mais se assemelha à sua vida, provavelmente o povo brasileiro colocaria a história do castigo de Sísifo entre as preferidas. Sísifo, que viveu vida solerte e audaciosa, conseguiu livrar-se da morte por duas vezes, sempre blefando. Rei de Corinto, não cumpria a palavra empenhada até que Tânatos veio buscá-lo em definitivo. Como castigo, os deuses o condenaram de forma impiedosa a rolar montanha acima um grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desabava montanha abaixo.

A maldição de Sísifo é recomeçar tudo de novo, tarefa que há de durar eternamente. O povo se sente no estado de eterno recomeço. Padece das previsíveis tragédias provocadas por chuvas, com mortes que sobem no ranking das catástrofes; angustia-se nas filas do INSS; vê o dinheiro sumindo do bolso com a economia em recuo e, agora, passa a temer a foice da morte, que aparece aqui e ali escondida na forma de um vírus, de nome corona, que não escolhe vítimas, atacando ricos e pobres. O mundo todo está tomado de pavor.

O pânico que começa a se alastrar deflagra uma cadeia de eventos e situações inesperadas. O corpo social é ferido de todos os lados. Suspensão de aulas, com efeitos sérios sobre o cronograma da vida escolar; diminuição de aglomerados e mobilizações de ruas e ambientes fechados, apesar de grupos com a síndrome do touro (arremetem com a cabeça e pensam com coração) não se incomodarem com isso; isolamento em casa ou em estabelecimentos hospitalares em quarentena, com semanas perdidas de trabalho; paralisação parcial de setores vitais da produção e dos serviços, perdas monumentais para a economia; débâcle das bolsas mundiais e da brasileira, que já perdeu cerca de 1 trilhão de reais com a desvalorização das companhias ali presentes; falta adequada de respostas à pandemia, seja por insuficiência das estruturas de saúde governamentais e privadas, seja por ausência de planejamento para enfrentar a crise.

Ao fundo desse panorama de desolação, enxergam-se paisagens de destruição, pequenas e grandes catástrofes: afundamento de barcos nos rios, quedas de barreiras nas rodovias e desabamento de casas; escândalos envolvendo governantes, políticos e empresários; ameaça de novos impostos; tensões acirradas entre os três poderes e politicagem que se acentua em ano eleitoral, entre outros.

Os efeitos são catastróficos, pois o sistema de vasos comunicantes acaba contaminando os poros da alma nacional, inviabilizando o espírito público, fonte primária do fervor pátrio, que Alexis de Tocqueville, há quase 200 anos, constatou no clássico A Democracia na América: “Existe um amor à pátria que tem sua fonte principal no sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde o homem nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.

Que amor à pátria pode existir em espíritos tomados pelo pavor, pela violência de tiros a esmo, mortes por balas perdidas, marginalidade comandada de dentro das prisões? Que espírito público pode vingar no seio das massas quando grupos polarizados teimam em querer dividir o país em duas bandas, impulsionando os eixos da discriminação e bradando contra a liberdade de imprensa?

Brasileiros motivados a emigrar para realizar o sonho de uma vida melhor na América do Norte voltam à terra,  expulsos, algemados, estampando frustração. Emigrar foi para eles a opção de milhares nesses tempos bicudos. Agora, retornam à casa sob  angustiante interrogação: o que vou fazer? Onde e quando chegaremos ao andar da estabilidade? Por que a economia não melhora o nosso viver?

Um fato: as margens embolsam seu dinheirinho no início de cada mês e, ao final, contam migalhas. Para piorar, com esta crise nas bolsas, viver sob a ilusão de ganhos inflacionários já não mais faz a cabeça do poupador.

A verdade é que o fator econômico dá o tom das nossas vidas. Consequentemente, os serviços sociais ficam com poucos recursos. O processo de reformas nunca chega ao fim. Mudanças na política? Quem sabe? Poderemos ver mais um levante em outubro próximo. Parecido com o que vimos em 2018.
 
* Jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato.
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Comentários

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Tião Aranha

18 de março, 2020 | 13:58

“Vamos torcer para que até lá pro mês de agosto-, nos dizeres do presidente Trump, essa crise já tenha passado.
Deve-se lembrar, que, tendo realizado com êxito um processo de industrialização por substituição de
importações de bens de consumo, a economia precisava avançar na direção de bens intermediários e de bens de base. A esquerda ansiava o poder. Essa história de crises no Brasil é antiga. E a conta sempre vem pro pobre pagar. Esse novo patamar requeria maiores escalas de produção e maior volume de capital. Acredito, eu, que, esse desnível apareceu desde o Plano de Metas do governo JK. No começo do anos 60, o adiamento dessa decisão já adquiria contornos de crise econômica, social e política. ***Pergunto-lhe: como vive hoje o proletariado urbano, as classes médias e a
burguesia nacional? - E onde foram parar os investimentos da Saúde, da Educação e do Saneamento básicos? (Que são os setores prementes para o desenvolvimento de qualquer país?). Pro bolso do trabalhador é que não foi. Em qualquer situação, o importante é não se afastar do objetivo comum. Incrível, como ainda tem gente vencida pela idade dos tempos, ainda espera alguma benfeitoria dos políticos - gastando energia em telas de computador...Não é o caso dos jornalistas experientes, como o senhor, /sabemos que muitos estão atônitos, em busca duma solução rápida para a crise ora instalada/; mas, infelizmente, tem muita gente usando das redes sociais para espalhar somente o pânico. Aqueles (os pobres) que não têm defesas mentais preparadas na Redenção sofrem mais: estão mais perdidos que cegos num tiroteio. Estamos vendo apenas a ponta do iceberg. As regras de consumismo serão, inevitavelmente, mudadas - passadas as crises.
Jesus foi Deus que totalmente humano viveu como tal, como um pássaro que
mesmo perdendo sua capacidade de voar, momento a momento, optou por ficar no chão.
Lamento só não passa de palavras - o importante é não afastarmos do nosso
objetivo: cada um salvar a sua própria alma. E sem redundância.
Deus age de maneira invisível, e o Homem não terá capacidade suficiente para
mudar o Projeto de Deus.
O problema todo, caro colunista, é que para a maioria das pessoas, o seu deus chama-se
Dinheiro.
(E este não é o pai que cuida da proteção de seus filhos e do seu livre-arbítrio).”

Gildázio Garcia Vitor

16 de março, 2020 | 17:27

“Que artigo assustadoramente realista e apocalíptico.”

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